terça-feira, junho 09, 2009

O estigma do caipirês


Preconceito sobre a origem das palavras nutre ignorância sobre peculiaridades da pronúncia, gramática e vocabulário da língua

Mário Eduardo Viaro


Muitas pessoas imaginam que, para saber a etimologia de uma palavra, basta abrir um dicionário etimológico. A resposta deve estar ali pronta para que a dúvida seja imediatamente dirimida. O mesmo efeito mágico é cobrado do próprio etimólogo, embora, no trato com especialistas em outras áreas igualmente sérias, como a medicina, eu não veja exigir-se uma resposta pronta, concisa e divertida para algo como a cura do câncer. Muitas vezes, dúvidas etimológicas não podem ser respondidas de chofre, sem árduas e longas pesquisas, principalmente quando se trata de palavras provenientes não do grego ou do latim, mas do árabe, das línguas africanas ou indígenas.

Muitos ficam frustrados quando consultam um dicionário etimológico e não encontram uma resposta para seu questionamento. Os maus etimólogos, preocupados com a frustração de seus leitores, fazem suposições completamente estapafúrdias para alegrá-los ou por alguma razão ainda mais obscura. Por isso, toda consulta etimológica deve ser feita com cautela. Não é a mesma coisa servir-se de um José Pedro Machado ou de um Silveira Bueno. O primeiro autor, de fato, nos conduz a boas respostas, já o segundo é extremamente controverso. No primeiro time está também Antônio Geraldo da Cunha, sem dúvida, o melhor etimólogo da língua portuguesa. Com mais cautela deve-se consultar o raro dicionário de Antenor Nascentes, que, a despeito do primor que demonstra em seu segundo volume (de nomes próprios), deixa soluções bastante questionáveis no primeiro (de nomes comuns).

Em vários artigos alertei para situações complexas que surgem quando se pretende estudar etimologias. Propor um étimo é ato muito temerário, sobretudo se nenhuma pesquisa foi feita. Étimos não são dedutíveis, antes devem provir de dados. Seria como se adivinhássemos quantas luas tem um planeta distante sem olharmos pelo telescópio, nem lermos nada sobre esse assunto. Mas, infelizmente, a tradição do "chute etimológico" é longa e tem raízes resistentes. Não costumo lamentar, apenas faço o que posso em meus escritos para erradicar essa prática que não leva a nada. Etimologia e diversão não formam um bom casamento, nem etimologia e imaginação. A combinação mais promissora é etimologia e erudição.

Aparência ilógica
O mesmo se dá com os chutes dos gramáticos. A estrutura "fazer com que" é formalmente bem estranha e foi o bastante para que um gramático logicizante como Cândido de Figueiredo (1846-1925), no começo do século 20, se voltasse contra ela. O argumento parecia razoá­vel: "fazer" é um verbo transitivo direto, portanto pede um objeto direto ou uma oração subordinada substantiva objetiva direta. Aparentemente a preposição "com" não faz sentido e deve ser eliminada, seguindo o princípio vaugelasiano de aplicação do inutilia truncat
[cortar as inutilidades]. Mas um linguista acha estranha - e com razão - essa tentativa de corrigir a língua, quase como um arremedo de eugenia. Não só os linguistas modernos. Também os pré-saussurianos achavam isso, tinham as mesmas preocupações e eram igualmente coe­rentes nas suas posturas.

Intrigado com esse decreto de Cândido de Figueiredo, um linguista mineiro, Lindolfo Gomes (1875-1953), publica em O Estado de São Paulo, de 4 de agosto de 1913 (transcrito na Revista Lusitana, no mesmo ano), um estudo detalhado sobre a origem dessa construção sintática. Argumentou solidamente - derrubando o achismo de Figueiredo por meio de provas documentais - que a construção remonta ao século XVII e pode entrever-se já em Rui de Pina, Garcia de Resende e Tomé da Veiga. A explicação para sua irregularidade provém, como sempre, de uma regularidade mais antiga. Assim, em vez de dizer "fez com que ele partisse", os autores mais antigos diziam "fez com ele que partisse". A preposição atraiu o pronome relativo, jogando o sintagma nominal para a frente, gerando assim um falso sujeito, única possibilidade de interpretação. Gomes conclui que "com que" não é uma locução conjuntiva, mas "vestígio preposicional de um adjunto adverbial latente". Parece-nos muito razoável tal explicação, cujo sucesso é devido aos dados. Mais que isso, dá dignidade a uma forma que até então sofria preconceito injusto, por parecer ilógica. Na verdade, a "lógica" que se deve procurar nunca é contemporânea, mas se encontra em sincronias pretéritas. O fato de ninguém as conhecer alavanca posturas que se voltam contra estruturas irrepreensíveis.

Fenômeno brasileiro
Da mesma forma, dizer que é errada a construção "ir em algum lugar" em vez de "ir a algum lugar" se tornou algo quase consensual, quando muito tolerável para distinguir língua falada e língua escrita. Dependendo do contexto, é quase um definidor de status, pois há sempre o pressuposto de que só uma pessoa inculta ou iletrada não consegue reprimir, numa situação formal, o uso da preposição "em" com "ir" e privilegiar o neutro e artificial "a". Como se trata de um fenômeno brasileiro, alguns chegaram ao absurdo de afirmar que esse "em" remonta a construções africanas. Mas a verdade é que "ir em" é medieval, aparece em dialetos portugueses atuais e em muitos lugares onde se formaram línguas românicas, por exemplo, na Romênia.

Em latim, o verbo ire com ad significava "ir para as proximidades de", já ire com in mais o caso acusativo significava "ir para dentro de". Ninguém implica com formas equivalentes como "chegar em". Não há nada de africanismo nesse uso da preposição. Os defensores dessa hipótese veem na expressão coloquial ni mim um elemento supostamente igual ao de algumas línguas africanas. Além do fato de o ni aparecer em outras línguas não-africanas como partícula de localização (por exemplo, no japonês), o problema mais sério é que nessas línguas, ni é uma posposição e não uma preposição.

Uma mudança estrutural seria muito forçada, quase absurda, para justificar o empréstimo, além do fato de que as preposições não são facilmente emprestadas no contato linguístico, como o são os substantivos ou verbos. A forma ni equivale a "de" (pronunciado [di]), criada por analogia: "do", "da", "de", no, na, ni. Mais coerente seria grafá-la como ne, quando, por exemplo, não nos valendo do alfabeto fonético internacional, queremos reproduzir a "fala real" (como na fala do Chico Bento, de Maurício de Sousa), mas a tradição é que manda em assuntos de escrita, como dizia Fernão de Oliveira, primeiro gramático da língua portuguesa.

Caipiras
Inúmeras outras idiossincrasias da gramática provocam a extinção de formas muito antigas correntes, à medida que a população se torna cada vez mais letrada.

Costumo dizer aos alunos que, se conhecem alguma expressão somente usada entre seus familiares, que a empreguem sem vergonha em outros contextos.

Assim, passando-a para a frente (em vez de a reprimir), não serão responsáveis pela sua extinção. Além do seu direito à vida, cada extinção de expressões pouco prestigiadas é uma tragédia para a linguística histórica e para a etimologia. É um elo que se perde para sempre, da mesma forma que a extinção de uma espécie biológica causa uma lacuna irrecuperável na compreensão da filogenia e da evolução dos seres vivos. Não salvemos só micos-leões, mas também as expressividades que o Brasil arcaicamente conservou durante séculos. Devemos lembrar que até mesmo formas que não correm tanto risco, como "eu vi ele", consideradas horríveis por puristas, aparecem em textos do século XV e são perfeitamente explicáveis pela linguística.

Consultando os Opúsculos, do português José Leite de Vasconcelos (1858-1941), uma gama enorme de palavras e pronúncias familiares desfila página após página diante de nós. O nosso "ta" em vez de "está" ocorre também em Portugal, assim como a preposição "pra" em vez de "para". Não houve, nesses dois casos, atuação da pronúncia indígena ou africana (aliás, pouca coisa, na área da gramática possui tais origens, já o mesmo não se pode falar do léxico ou da toponímia).

Muitas pronúncias que pensaría­mos ser típicas dos caipiras e matutos ainda eram correntes em Portugal no começo do século XX: "arve", "fruita", "úrtimo", "marfeito", "prantar", "invaporar", "num quero", "coiso", "gumitar", "home" (e o diminutivo "hominho"), "memo", "mermo", "muléstia", "mericano", "ruim", "muntar", "cama", "inselência", "Cremente", "grandissíssimo", "maginar", "onte", "tamém", "adequerido", "beim nharto" (bem alto), "qué" (quer), "quarquer", "cheguemos", "nós semos", "agoneia", "vinhemos", "inté", "vosmecê", "barboleta", "bença" (bênção), "crendeuspadre", "munto" (muito), "pagou a pena" (valeu a pena), "agardecido", "parteleira", "pinguela", "batucar", "eu le dei", "macetar" (esmagar), "pipino", "piqueno", "piqueninho", "púbrico", "praino" (plano), "queto" (quieto), "dia de São Nunca", "sastifeito", "abobra", "marelo", "drumir". A semelhança entre essas formas portuguesas e as caipiras são surpreendentes e, nesse sentido, há projetos que buscam estudar cientificamente esses fatos, como o Projeto Caipira (USP) e o Iboruna/Alip (Unesp de São José de Rio Preto).

Estigma
Também na lista deve-se incluir o agora raro "estrudia" (que provém de "estoutro dia", como prova Vasconcelos), em vez de "outro dia desses", testemunhado na imitação humorística e estereotipada da fala mineira. Amadeu Amaral (1875-1929) documenta a forma jinela no português caipira de São Paulo e Vasconcelos também o documenta em Portugal. Hoje, essa forma - se não estiver completamente extinta - está escondida em algum canto, pois não se ouve espontaneamente.

Da mesma forma, a pronúncia de "lua" com u nasal (como em "muito") é agora rara nos dois lados do Atlântico. Longe de ser fruto de ignorância ou uma excentricidade, essa nasalidade do u nessa palavra é o que sobrou da antiga consoante nasal n da palavra antiga luna, a qual está presente em palavras cultas como "sublunar" ou em outras línguas românicas, como o espanhol luna ou o francês lune. Também na pronúncia "chuiva" nenhum i foi acrescentado, pois é uma conservação do latim pluvia (com metátese): também se vê no espanhol lluvia. Ao contrário, foi a variante utilizada pela forma culta que perdeu esse som.

Pinchar
A palavra "pinchar" era comum entre os caipiras, no ambiente rural de Portugal e em lugares longínquos como a Malásia, para onde os portugueses levaram nossa língua. Hoje, apesar de existente, parece confinar-se à lamentável representação estereotipada do caipira ignorante, sobretudo depois do enriquecimento do interior paulista.

Estigmatizar, infelizmente, voltou à moda com o fenômeno da suposta ascensão social ou do maior leque de consumidores. Ninguém quer se identificar com uma classe iletrada e ignorante, que já perdeu todos os seus valores na revolução industrial brasileira. Mas, para além de ser lamentável, esse comportamento é um desserviço à história da nossa língua e nos mantém para sempre ignorantes do que houve no passado e das razões da peculiaridade de nossa pronúncia, gramática e vocabulário. Instaurado esse vácuo, só sobra espaço para o mito e para os charlatães que, com suas maravilhosas e inconsistentes histórias, se cercam de uma falsa aura de sabedoria.

Mário Eduardo Viaro é professor de língua portuguesa pela USP, autor de Por trás das Palavras (Globo, 2004)

Fonte : revista língua portuguesa - ver marcadores