domingo, junho 28, 2009

Flaubert e as ideias prontas

Diante da avalanche de clichês que inundavam a literatura de seu tempo, o escritor francês Gustav e Flaubert resolveu organizar um Dictionaire des idées reçues, mas moreu sem completá-lo. A obra foi publicada postumamente com os poucos verbetes escritos . Em 1952, Fernando Sabino traduziu para o portugu ês o glosário, sob o título "Lugares-Comuns", e anexou-lhe o "Esboço de um Dicionário Brasileiro de Lugares-Comuns e Idéias Convencionais".

Flaubert já dá início à obra lembrando que "somos feitos de cita ções" e cada verbete tem um tom irônico e satírico . Alguns exemplos:

Alcorão - Livro de Maomé que só se ocupa de mulheres.
Alemães - Povo de sonhadores (velhos).
Apartamento de rapaz - Sempre em desordem. Com bugigangas de mulheres espalhadas por
toda parte. Cheiro de cigarro. Encontram-se aí coisas extraordinárias.
Banqueiros - Todos ricos, árabes, lobos carniceiros.
Bolsa - Termômetro da opinião pública.
Canhotos - São terríveis na esgrima. Mais ágeis do que aqueles que se servem da mão direita.
Celebridades - Preocupar-se com o mínimo detalhe de suas vidas privadas, para poder difamá-las.
Crítico - Sempre eminente. Deve fingir tudo conhecer, tudo saber, haver lido tudo, visto tudo.
Quando o crítico nos desagrada, devemos chamá-lo de Aristarco (ou eunuco).
Dinheiro - Causa de todo mal. Dizer: Auri sacra fames.
Deputado - Ser deputado é o cúmulo da glória. Esbravejar contra a Câmara dos Deputados.
Há palradores demais na Câmara. Não fazem nada.
Diploma - Distintivo da ciência. Não prova nada.
Doutrinadores - Desprezá-los. Por quê? Não se sabe.
Economia Política - Ciência sem entranhas.
Elefantes - Distinguem-se pela memória e adoram o sol.
Enciclopédia - Ironizá-la como obra de rococó, ou mesmo combatê-la.
Escroques - São sempre da alta sociedade.
Estoicismo - É impossível.
Fábrica - Vizinhança perigosa.
Geração espontânea - Ideias de socialista.
Hugo (Victor) - Errou muitíssimo em meter-se na política.
Homero - Nunca existiu. Célebre pela sua maneira de rir: um riso homérico.
Imbecis - Aqueles que não pensam como nós.
Inventores - Morrem todos no hospital. Há sempre alguém que se aproveita de suas
descobertas, o que não é justo.
Lavradores - Que seria de nós sem eles?
Literatura - Ocupação dos ociosos.
Livro - Qualquer que seja, é sempre demasiadamente longo.
Louras - Mais quentes do que as morenas (vide Morenas).
Morenas - São mais quentes que as loiras (vide Loiras).
Negras - Mais quentes que as brancas. (vide Morenas e Loiras).
Operário - Sempre honesto, quando não provoca motins.
Ordem Pública (A) - Quantos crimes se cometem em teu nome!
Orquestra - Imagem da sociedade; cada qual executa a sua parte, e há um chefe.
Original - Rir-se de tudo que é original; odiá-lo, injuriá-lo, exterminá-lo, se possível.
Ostras - Não se pode mais comê-las! Estão caríssimas!
Otimista - Equivalente a imbecil.
Ovo - Ponto de partida para uma dissertação filosófica sobre a gênese dos seres.
Ruivas - (vide Loiras, Morenas, Brancas e Negras).

Fonte: Revista da Língua Portuguesa.


Clichês a palavra como objeto


Exemplo de banalidade ou maneira de assegurar a legibilidade de um enunciado? A relação dual entre as expressões prontas e a língua não esconde o fascínio que clichês exercem, seja na linguagem falada, na escrita ou na literatura.

por Tatiana Napoli

Um caso de amor e ódio. A maioria dos estudiosos evita os clichês como o diabo foge da cruz, mas as frases feitas dão o tom do uso da língua. Apesar de serem verdadeiras pedras no sapato dos linguistas, chavões são uma faca de dois gumes para quem trabalha com linguagem.

O parágrafo anterior, repleto de clichês, exemplifica a dualidade mantida pelos chavões na linguagem: são exemplos de banalidade e barreiras para a originalidade, ao mesmo tempo em que representam uma maneira fácil de entendimento e de assegurar a legibilidade dos enunciados.

Clichês são expressões tão utilizadas e repetidas que se desgastaram e afastaram-se de seu significado original. Essa espécie de "preguiça linguística", que poupa esforços, inibe a reflexão e multiplica a passividade entre interlocutor e receptor, permeia todos os níveis da linguagem. Da conversa de elevador aos discursos políticos, passando, obviamente, pela mídia - como explicar, afinal, o uso de expressões feitas que acabam virando modismos nos meios de comunicação, como "agenda política", "exercer a cidadania" e "herança maldita"? Ao usar clichês como muletas do discurso, o texto certamente flui com facilidade - mas a linguagem empobrece.

Os clichês estão marcados na história da linguagem como parte técnica da retórica.

Em defesa do clichê

A concepção de que "clichê bom é clichê morto" não é compartilhada, no entanto, por todos os estudiosos modernos. Christopher Ricks, conhecido crítico literário e professor universitário britânico, considera que clichês podem ser estimulantes e pondera: "Os clichês convidam-nos a não pensar - mas podemos sempre declinar o convite, e o que mais pode convidar um indivíduo pensante a pensar do que este convite?" Ele sustenta que nenhum escritor pode se permitir desdenhar dos clichês: "os clichês estão em todos os lugares na linguagem do dia-a-dia, e você simplesmente não vai conseguir se isolar deles." Ricks propõe que, em vez de banir os clichês ou evitá-los por serem malignos, o interessante seria usá-los de forma imaginativa para criar possibilidades benéficas para e com eles.

O francês Michael Riffaterre é outro defensor das frases prét-à-porter. No ensaio "Função do Clichê na Prosa Literária", ele destaca que "o clichê apresenta o paradoxo de ser um agente de expressividade devido justamente às características que a crítica considera como defeito" e observa que o clichê pode ser batido sem deixar de ser eficaz. "Não se deve confundir banalidade com desgaste. Se fosse desgastado, o clichê perderia tanto a sua clientela como os seus inimigos, o que não é o caso. Ele não passa despercebido, pelo contrário, chama sempre a atenção sobre si."

Mas nem o mais ferrenho detrator do clichê pode discordar que sem o lugar-comum não há como operar os níveis da fala. Repudiar por completo os chavões seria ansiar por uma linguagem totalmente original, que, mesmo que pudesse existir, impediria a comunicação. Talvez seja o caso, como Claudio Tognolli propõe na entrevista a seguir, de apenas criarmos novos.

O clichê metafórico e o clichê fraseológico

Em seu "Comunicação em Prosa Moderna", da editora FGV, Othon M. Garcia distingue os tipos de clichês:

Não se deve confundir o clichê metafórico (metáfora surrada do tipo "O Sol é o astro-rei" ou "a Lua é a rainha da noite") e o fraseológico (do tipo "virtuoso prelado") com a frase-feita (locuções, ditados, rifões) de genuíno sabor popular e tradicional, do tipo "alhos e bugalhos", "onde a porca torce o rabo", "coisas do arco-da-velha", "falar com os seus botões", "camisa de onze varas", "cavalo de batalha", "cobras e lagartos", "fôlego de sete gatos" e muitas outras expressões populares de origem desconhecida ou hermética, em que se refletem a alma, a filosofia e os costumes populares.

Fonte: Revista Língua Portuguesa

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sexta-feira, junho 26, 2009

Escassez de alimentos e ameaças à civilização


O maior risco à estabilidade global é o potencial da crise alimentar de provocar a derrocada de governos em países pobres. Essa crise está sendo gerada pelo constante agravamento da degradação ambiental
por Lester R. Brown

Uma das tarefas mais difíceis de fazer é antecipar mudanças repentinas. Geralmente projetamos o futuro extrapolando tendências do passado. Na maioria das vezes, esse enfoque funciona. Mas, às vezes, falha espetacularmente e as pessoas são simplesmente surpreendidas por eventos como a atual crise econômica.

Para muitos de nós, a idéia de que a civilização pode desintegrar-se provavelmente parece absurda. Quem não acharia difícil pensar seriamente sobre abandonar completamente aquilo que esperamos da vida comum? Que evidência poderia nos fazer prestar atenção a um alerta tão terrível – e como nos comportaríamos para responder a ele? Estamos tão habituados a uma longa lista de catástrofes improváveis que acabamos virtualmente programados a rejeitá-las num piscar de olhos: claro, nossa civilização pode ser dissolvida num caos – e a Terra também pode colidir com um asteróide!

Durante muitos anos, tenho estudado tendências agrícolas, populacionais, ambientais, econômicas e suas interações. Os efeitos combinados dessas tendências e as tensões políticas que elas geram apontam para o colapso de governos e sociedades. Eu mesmo vinha resistindo à idéia de que a escassez de alimentos poderia levar à derrocada não apenas de governos, isoladamente, mas também de nossa civilização global.

Não tenho mais como ignorar esse risco. Nosso reiterado fracasso em lidar com os declínios ambientais que minam a economia alimentar mundial – e, mais importante, reduzem os níveis dos lençóis freáticos, erodindo solos e elevando temperaturas – me obriga a concluir que esse colapso é possível.

Fonte:Scientific American Brasil
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terça-feira, junho 23, 2009

Culpa, ressentimento e a inversão dos valores em Nietzsche


Para ser feliz, o homem precisa afirmar sua potência de vida. Quando essa é reprimida, ele leva uma existência submissa, apenas reativa. Sentimentos como culpa e ressentimento decorrem de valores estabelecidos pelo homem reativo Por Amauri Ferreira

Qual é a origem do pecado, da culpa, e do ressentimento? São sentimentos que se tornaram tão comuns que podem nos levar a acreditar que eles são inerentes ao homem. O filósofo alemão Friedrich Nietzsche (1844-1900), em sua genealogia, nos diz que esses sentimentos são inseparáveis da moral judaico- cristã. É por essa moral que o homem experimenta continuamente uma repressão de seus impulsos ativos. Mas como esses impulsos não somem, é inevitável que haja um conflito entre uma moral que reprime e a nossa vontade de potência, que quer expandir-se. Assim, segundo o filósofo, o homem torna-se reativo quando vive limitado apenas à conservação da sua existência, o que faz multiplicar o seu sofrimento e a necessidade de viver cada vez mais submetido às promessas de recompensa oferecidas pelo poder sacerdotal. Dessa forma, o homem passa a ignorar um aspecto primordial da existência que é a criação, ou seja, é somente por meio da efetuação da sua natureza que o homem torna-se capaz de criar novos valores, de afastar para longe de si a culpa e o ressentimento.

Nesse sentido, Nietzsche nos diz que a felicidade corresponde ao crescimento da nossa potência, a uma constante diferenciação de si mesmo, o que torna desnecessária toda crença em um ideal ascético, isto é, em um modelo de perfeição que esmaga as diferenças.

Vontade de potência

Para Nietzsche, a natureza é constituída por uma multiplicidade de forças (ou impulsos) que estão permanentemente em conflito: forças que, ao assimilarem outras forças, crescem e expandem a sua potência; forças que, ao serem exploradas, reagem e tentam resistir à dominação. Nesse sentido, toda força é vontade de potência (ou vontade de poder), isto é, um impulso constante ao crescimento intensivo: "A vontade de poder só pode externar-se em resistências; ela procura, portanto, por aquilo que lhe resiste. [...] A apropriação e a incorporação são, antes de tudo, um querer-dominar, um formar, configurar e transfigurar, até que finalmente o dominado tenha passado inteiramente para o poder do agressor e o tenha aumentado" (A vontade de poder, 656). Portanto, as relações entre as forças envolvem necessariamente um desequilíbrio ou uma desigualdade entre elas, por isso sempre vão existir forças que são dominantes e outras que são dominadas. É evidente que se trata de uma hierarquia estabelecida pela potência das forças conflitantes e não uma hierarquia determinada pela representação da potência, que seria assegurada por intermédio de uma lei: "Acautelo-me de falar em 'leis'químicas: isso tem um sabor moral. Trata-se antes de uma verificação absoluta de proporções de poder: o mais fortalecido torna-se senhor do mais fraco, à medida que este não pode impor justamente o seu grau de autonomia, - aqui não há nenhum compadecer-se, nenhuma preservação, ainda menos um respeito a 'leis'!" (A vontade de poder, 630).

"Cada conquista do conhecimento decorre do ânimo, da dureza contra si, do anseio para consigo" Nietzsche

A força dominante é ativa, pois seu domínio ocorre em circunstâncias em que ela é capaz de agir e modificar a realidade estabelecida, expandindo, dessa forma, a sua potência. Já a força dominada é passiva ou reativa, pois, limitada pela mais forte, apenas reage ou adapta-se à dominação: "O que é 'passivo'? Ser tolhido no movimento que avança açambarcando: portanto, um agir da resistência e da reação. O que é 'ativo'? É o que açambarca poder, dirigindo-se para fora" (A vontade de poder, 657). Por isso Nietzsche faz a importante distinção entre nobres e plebeus, senhores e escravos: os nobres ou senhores são os que podem dominar os mais fracos, e os plebeus ou escravos são os explorados pelos mais fortes e, enquanto estiverem submetidos às forças mais potentes, estão impedidos de exercer um domínio sobre outras forças.

Bom e ruim

Essa distinção é fundamental para uma problematização da geração de valores. Ao mesmo tempo em que domina, o homem nobre interpreta, avalia, isto é, cria e impõe valores que derivam de uma afirmação da vida, de uma afirmação dos sentidos do corpo. Dessa maneira, ele considera "bom" todo aquele que é capaz de expandir a sua potência, metamorfoseando- se, e, ao contrário, considera "ruim" os que vivem entravados no impulso ao crescimento da potência, impedidos de se diferenciarem. Portanto, a origem do conceito "bom" está relacionada à própria ação efetuada pelo homem nobre - ele afirma a sua diferença. Isso quer dizer que "o juízo 'bom' não provém daqueles aos quais se fez o 'bem'! Foram os 'bons' mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, vulgar e plebeu. Desse phatos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade!" (Genealogia da moral, primeira dissertação, 2).

Má consciência

Os conflitos entre as forças geram as impressões (ou imagens) que são recolhidas pela nossa consciência. Para Nietzsche, a consciência é de natureza reflexiva e reativa, porque ela apenas conhece os efeitos de uma atividade inconsciente (os conflitos entre as forças) e, a partir disso, podemos organizar as funções práticas da nossa existência. Ora, a doença do homem escravo e reativo está relacionada a uma "indigestão" das impressões recebidas. Ele torna-se cada vez mais incapaz de esquecer as impressões, o que lhe causa dor (já que são constantemente re-sentidas), impedindo-o de abrir-se ao ineditismo de todo acontecer: "[...] a lembrança é uma ferida supurante. Estar doente é em si uma forma de ressentimento. [...] E nenhuma chama nos devora tão rapidamente quanto os afetos do ressentimento. [...] O ressentimento é o proibido em si para o doente - seu mal: infelizmente também sua mais natural inclinação" (Ecce Homo, Por que sou tão sábio, 6). Mas a doença do homem reativo torna-se ainda mais grave porque ele também experimenta uma crescente interiorização dos seus impulsos inconscientes, isto é, os impulsos ativos que o levariam à dominação são constantemente refreados, o que dá origem à má consciência: "Todos os instintos que não se descarregam para fora se voltam para dentro. [...] A hostilidade, a crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição - tudo isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má consciência" (Genealogia da moral, segunda dissertação, 16).


Transvaloração

Por intermédio do método genealógico, Nietzsche nos mostrou que os valores superiores à vida, fundados pelo ressentimento e pela má consciência, atendem os interesses do homem reativo, que, por não afirmar a sua potência, precisa negar o mundo imanente e transformar o ideal, a imortalidade da alma, a identidade, o ser, o Criador, o bem, o justo e o verdadeiro, em valores inquestionáveis. Pela moral judaico-cristã, o rebanho impotente continua a crescer cada vez mais rápido na era dos mass media, já que estes servem para reforçar a consciência da identidade do rebanho: o pensamento de que "todos nós somos muito parecidos" oferece segurança aos fracos... Na época da democracia tudo é reproduzido em série, tudo se iguala, tudo se rebaixa, nada mais difere. E tudo o que é classificado de "diferente" passa a unir-se a um rebanho que está submetido a um modelo humano de perfeição - assim o homem reativo anseia por um fim dos conflitos entre as forças para alcançar a "felicidade da paz". Nietzsche não vê outra saída para o futuro do homem a não ser a transvaloração dos valores, o que implica uma transmutação da maneira que o homem vive - uma nova maneira de viver que se alimenta de todo acontecer para diferenciar-se, não pela representação da diferença, mas por uma potência da vida que, a cada retorno, não nos permite que sejamos o mesmo. Somente assim os valores modernos que estão impregnados pela moral judaico-cristã, como o "eu", a obediência, o progresso, a paz e tantos outros, são destruídos por valores muito mais nobres: a terra, o corpo, as sensações, o devir, o acaso, passam a ser desejados por quem aprendeu a amar a vida.

É feita uma associação, considerada indevida e ingênua pelos estudiosos da obra de Nietzsche, entre as ideias do filósofo e o nazismo. Ela decorre das críticas nietzschianas aos valores da moral cristã, de sua teoria da vontade de potência e do seu elogio ao super-homem. Muitos destes conceitos foram apropriados pelo nazismo, mas o filósofo deixou vários textos em que condena nacionalismos e totalitarismos
Culpa é o que o sujeito sente quando avalia seus atos de forma negativa. O pecado, no sentido religioso, está ligado à culpa. Ele ocorre quando a pessoa comete algo que supostamente não é bem-visto pela divindade, quando transgride um tabu ou uma norma religiosa
Amauri Ferreira, filósofo e escritor. Ministra cursos, coordena grupos de estudos e desenvolve pesquisas pela Escola Nômade de Filosofia (www.escolanomade.org) Blog: amauriferreira.blogspot.com

Fonte: Revista Ciência & Vida

domingo, junho 21, 2009

Um Crítico Implacável


Textos inéditos mostram quanto Manuel Bandeira podia ser severo – e irônico – na análise da produção literária dos anos 30, ao mesmo tempo em que apontava os novos caminhos para o modernismo

Por Almir de Freitas

Numa crônica sobre um livro do ensaísta Sérgio Milliet chamado O Sal da Heresia (1941), Manuel Bandeira esclarecia a razão do título: tratava-se do "sal" que deveria temperar a boa crítica — ainda que seu autor venha a ser considerado um "herege" por artistas descontentes com o exame rigoroso da obra de arte. "A verdade", escreve, "é que não havendo choque, aí sim, não existe necessidade nenhuma de crítica." A frase serve como uma divisa de Crônicas Inéditas II, lançamento da Cosac Naify que, previsto para o mês que vem, reúne textos do poeta pernambucano escritos para a imprensa entre 1930 e 1944. Embora levem o nome de "crônicas", tendem mais para a crítica — uma crítica sem concessões, em que a precisão se combinava, às vezes, com certa dureza.

O que não deixa de ser surpreendente. Grande homenageado pela sétima edição da Festa Literária Internacional de Paraty, que acontece de 1º a 5 de julho, Manuel Bandeira sempre foi mais identificado com o "açúcar" de uma poesia lírica e melancólica, deixando o papel de brigador do modernismo para Oswald ou Mário de Andrade. Mas o "tísico profissional" que esperou pela morte por tuberculose ao longo de toda a vida e se definia insistentemente como um "poeta menor" estava longe de ser um comentarista pacato e humilde da vida social do Rio de Janeiro na primeira metade do século 20. Nas crônicas, sobram farpas para os hábitos e gostos da elite da capital, mas também para concertos, músicas, exposições, filmes, peças e — neste volume em especial — livros.

Nos textos da década anterior, reunidos em Crônicas Inéditas I (1920-1931), predominavam os panegíricos e as reportagens didáticas sobre a vida cultural da capital, num tom exageradamente formal e solene. Já neste volume, Bandeira parece mais à vontade. Em certo sentido, é um texto mais "modernista", de linguagem mais acessível e de estilo direto, antecipando em boa parte as análises de Apresentação da Poesia Brasileira, livro que seria publicado em 1946 (leia texto na página 34). No varejo do jornalismo, contudo, é maior a disposição de arriscar opiniões no confronto. Em 1933, por exemplo, ele publica no carioca Diário de Notícias a coluna Impressões Literárias, em que, a respeito dos livros recebidos, se queixa: "A vantagem dos críticos está em não comprar; a desvantagem, às vezes, em ler".

É assim que faz troça dos beletrismos do também pernambucano Olegário Mariano, que comparou o poeta parnasiano Osório Dutra a um personagem da ópera de Vivaldi, Bejazet, "sultão adormecido, que no dorso dos camelos lentos e dos elefantes vagarosos do seu poema Castelos de Marfim, chegou mais depressa ao Petit Trianon do que aqueles que vieram arrebatados pelas asas vertiginosas dos aeroplanos". É evidente a ligeira provocação de Mariano aos modernistas e suas máquinas, e, em parte, o tom irônico de Bandeira pode ser como uma reação em defesa do movimento lançado na Semana de Arte de Moderna de 1922, ao qual ele pertencia.

Da mesma maneira, comenta Terra Imatura, do cearense Alfredo Ladislau: "O autor gosta de latinismos campanudos como 'largífluo', 'voltívolo', que soam muito engraçados junto das vozes indígenas, como por exemplo quando fala do 'voltívolo Surubiú'. A terminologia científica eriça-se brava: 'ex-abrupta vomição do seu hidropírico Antisana', 'campos em clorido diaphonorama'...". Em outros momentos, pega mais pesado, ao chamar de "ilegível" a tradução empolada de uma edição de O Anjo Azul, de Heinrich Mann, distante da fala comum defendida pelos modernistas. Depois de transcrever um exemplo do texto, pergunta: "Será assim o português de Blumenau?", provavelmente se referindo à origem catarinense de um tradutor que ele chama apenas de "qualquer pessoa".

GRILO FALANTE DO MODERNISMO
Mas Manuel Bandeira está longe de ser mero prosélito das causas da Semana de 22. Como acontece com todo bom crítico, suas análises são tão mais precisas quanto menos regidas por manifestos programáticos. Nesses momentos, Bandeira deixa de ser o "São João Batista do Modernismo", definição de Mário de Andrade para seu papel de precursor, para se tornar uma espécie de Grilo Falante do movimento, apontando os seus descaminhos. "Os modernos andam com muito nojo do conto regional", anota ainda em 1933, elogiando a produção do gênero daquela época. Em outros textos, afirma de passagem que não é daqueles "que renegam em bloco a estética parnasiana" e alerta para o domínio do verso livre que degenera em "perigosa facilidade".

Nessa fase, há pelo menos um confronto mais sério com um modernista — e logo com Oswald de Andrade, um dos mentores do movimento, criador da ideia de antropofagia. Embora Bandeira sempre elogiasse a poesia do autor de Pau Brasil, em 5 de agosto de 1933 critica duramente o romance Serafim Ponte Grande em artigo na revista Literatura. Pontuado por referências irônicas à conversão de Oswald ao socialismo em 1931 (e a resistência do Partido Comunista a ela), o poeta-crítico qualifica o livro de "repetitivo" e aponta no autor um "individualismo que tanto se compraz — acima de tudo se compraz — na deformação diletante e feroz" (leia trechos na pág. 31).

Pode-se, claro, invocar aí — e nas desavenças posteriores entre os dois — uma querela pessoal: quatro anos antes, Mário de Andrade e Oswald haviam rompido relações, e Bandeira sempre se alinhou ao primeiro, com quem se correspondia e de quem era amigo. Se o componente pessoal é inevitável, ele não invalida a avaliação técnica e as razões estéticas da crítica. Na verdade, há uma mistura das duas coisas — a mesma que está na raiz, aliás, da oposição entre Oswald e Mário e traduz os impasses da primeira fase do modernismo. Com esse mesmo procedimento, Bandeira pode elogiar repetida e quase obsessivamente o poeta católico e editor Augusto Frederico Schmidt, que é tanto seu amigo pessoal quanto, como ele disse certa vez, o responsável por "quebrar os clichês gastos do modernismo da primeira hora", um autor que soube aproveitar "as lições do modernismo para superá-lo".

Porque o fundamental nesse momento é apontar um tipo de modernismo que, nos anos 30, já era passadista. E é essa independência em relação aos dogmas iniciais do movimento, essa abertura à prospecção do futuro, que talvez esteja por trás da avaliação mais impressionantemente acertada presente em Crônicas Inéditas II. No dia 19 de novembro em 1933, ainda na coluna Impressões Literárias, ele destaca (apesar de "certa secura", como diria mais tarde) os versos torturados, católicos à maneira simbolista, do livro de estreia de um jovem de 19 anos. O livro era O Caminho para a Distância, e o poeta se chamava Vinicius de Moraes. Àquele que seria o maior sonetista do modernismo nas décadas posteriores, Bandeira recomendava o abandono do verso livre e a adoção da métrica tão vilipendiada no início pelos modernistas. "É evidente que a sua facilidade verbal está pedindo por ora a disciplina de formas menos arbitrárias", escreveu.

Cinco anos depois, Vinicius lançava seu terceiro livro, Novos Poemas, em que abandonava aquelas metafísicas tortuosas do início. No ano seguinte, no longo texto A Produção Poética de 1938, publicado no Anuário Brasileiro de Literatura, Bandeira comemora a metrificação dos poemas do novo livro e os "pés no chão" do poeta (leia trecho na pág. 32). E, referindo-se aos sonetos de Novos Poemas, aproveitava para colocar novamente o Grilo Falante em cena: "Todos eles são bons e vêm mostrar como andavam errados certos sujeitos quando imaginavam que ser moderno era dizer mal do soneto. Quiseram matar o soneto. Não foi a primeira vez". Sim: Vinicius e Bandeira haviam se tornado amigos em 1936, três anos depois do primeiro texto. Mas como pôr a crítica sob suspeição diante de tamanho acerto? Com a bênção de Bandeira, Vinicius também aproveitava as lições do modernismo para superá-lo.

Nem sempre, é claro, Bandeira acerta, tampouco está imune a idiossincrasias como crítico. A propósito de Oscarina (1931), livro de estreia de Marques Rebelo, diz que o escritor carioca é um "romancista nato", mas não esconde uma preferência pela obra hoje quase esquecida de Ribeiro Couto, tema de vários textos desde a década anterior. Já em outra ocasião, aponta Amando Fontes, autor de Os Corumbas (1933), como o de "maior fôlego de romancista" entre uma seleção que incluía o próprio Rebelo, José Lins do Rego e Jorge Amado. Fontes, outro que era famoso na época, só escreveria mais uma obra, Rua do Siriri (1937).

Nada, contudo, que comprometesse o ofício de "salgar" a vida cultural de um país que, em meio à luta contra o arcaísmo provinciano do século 19, ainda estava longe de saber para onde deveria ir. Bandeira certamente não concordaria com essa importância atribuída à sua atividade como crítico — daí dizer, vez ou outra, que o que fazia era "conversar fiado". O que é até aceitável para quem que, tendo escrito Carnaval (1919), Libertinagem (1930) e Estrela da Manhã (1936), se definia como "simples e pobríssimo poeta lírico".

Fonte: Revista Bravo

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A reconfiguração da família e as novas formas de ser do lar

Mudanças comportamentais e nas concepções morais da sociedade implicam uma importante alteração do padrão familiar tradicional
por ÁDIMA DOMINGUES DA ROSA
ÁDIMA DOMINGUES DA ROSA é bacharel e mestranda em Ciências Sociais na Unesp

O trecho da famosa música Pais e Filhos, da banda de rock Legião Urbana, sintetiza, em uma ótica estética, muitas das transformações sociais pelas quais a instituição familiar contemporânea tem atravessado. "Eu moro na rua, não tenho ninguém, eu moro em qualquer lugar, já morei em tanta casa que nem me lembro mais, eu moro com meus pais". Essa mensagem demonstra com sutileza e claridade o sofrimento dos filhos que são muito afetados pela separação dos pais, fato que tem se tornado cada vez mais comum, conforme apontam os dados do IBGE .

No entanto, esse rearranjo da família atual não pode ser negado e deve, inclusive, ser celebrado como uma transformação positiva nos padrões e nas relações afetivas, rumo às vivências mais plurais e democráticas. A sua aceitação é fonte destacada de reflexão social e implica ainda a necessidade de se repensar a elaboração de políticas públicas.

Com as grandes transformações observadas nas últimas décadas no campo da sexualidade, da afetividade e das dinâmicas sociais, a família nuclear, heterossexual, não deve ser mais tida como o modelo único, ou mesmo o padrão referencial, mas apenas como mais uma forma de arranjo familiar. Afinal de contas, o número de mulheres e homens que coordenam sozinhos seus lares junto com os seus filhos é altíssimo. Além disso, cresce a percepção social de que é fundamental reconhecer o direito de casais homossexuais de constituírem uma família e terem filhos.

Neste quesito, as políticas públicas brasileiras são avançadas, pois refletem a família a partir de sua função, levando em consideração a solidariedade entre seus membros, o desencadeamento das relações entre eles e a importância no desenvolvimento que cada indivíduo exerce sobre o outro. Não há e não deve haver qualquer juízo de valor acerca de qual a orientação sexual "ideal" dos cônjuges. Ao contrário, deve existir apenas um reforço no papel da família como instituição central para a proteção social.

É fundamental reconhecer o direito de casais homossexuais de constituírem uma família e terem filhos

Essa visão de família não unilinear está substanciada tanto na realidade quanto em diversos documentos governamentais, principalmente aqueles voltados à assistência social, onde o apoio, a orientação e a manutenção da família constituem a prioridade. Mas não é aquela família "quadradinha", que muitas vezes imaginamos à luz de preconceitos e visões heteronormativas do mundo.

As políticas públicas atuais levam em consideração modelos diferenciados de famílias, partindo do pressuposto de que as mulheres ganharam não apenas a sua independência financeira, mas também a de seus destinos, passando a coordenar as suas famílias, sem receios de fracasso, porém muitas vezes enfrentando o preconceito da sociedade - situação comum também aos casais homossexuais.

Neste caso em particular, nos parece que, muitas vezes, as concepções das políticas públicas compreendem um nível avançado até de absorção de novos padrões comportamentais. Mas, no âmbito das dinâmicas cotidianas, as relações caminham a passos lentos e nem sempre percorrem o mesmo caminho das legislações. Em alguns casos, porém, a legislação parece bastante retrógrada, principalmente quando observamos a difi- culdade de adoção de filhos por parte de casais homossexuais.

Quando isso ocorre, se transforma em notícia nacional, num acontecimento que "está para além desta sociedade", pois parece ofender os valores de setores conservadores da sociedade, sobretudo os religiosos. É utilizando esse tipo de exemplo que podemos perceber com mais clareza o quanto a sociedade como um todo é preconceituosa, o quanto idealizamos um tipo de família heterossexual, em que o pai exerce o papel de coordenador do lar. O enfrentamento a essa dominação masculina e heterossexual da instituição familiar serve de bandeira para diversos movimentos sociais, tais como o feminista e o GLBTT. Como bem podemos notar, a realidade social está mil anos à frente de alguns valores que ainda persistem.

O que insiste em permanecer é a sombra do preconceito que, no decorrer de nossa formação, enquadra o sexo feminino e masculino em caixinhas de titânio, vinculadas à identidade sexual heterossexual, que são quase impossíveis de serem quebradas. A formação das crianças ainda é dividida em meninos e meninas, a dominação de gênero ainda está impressa em cada brinquedo infantil, que irá, de certa forma, determinar as habilidades a serem desenvolvidas em cada um de nós. Assim, a divisão social do trabalho é naturalizada, como se homens já nascessem conhecendo matemática e a estrutura completa de um computador, enquanto as meninas nascem sabendo fazer uma deliciosa feijoada, aprendendo bem as técnicas de manejo com o fogão e com a lavadora de roupas.

É preciso, porém, compreender que a diversidade sexual, com sua pluralidade afetiva e de experiências, constitui, sobretudo, um positivo elemento de integração dos laços sociais e de vivência civilizada. A orientação sexual do indivíduo não influencia de forma negativa o seu caráter. Pelo contrário, só traz benefícios à sociedade, pois um indivíduo satisfeito no seu relacionamento afetivo-sexual será uma pessoa feliz e tranquila em todos os ambientes sociais, seja de trabalho, escola ou família. A comprovação do bem-estar social causado pela aceitação das diferentes orientações sexuais é a própria verificação do que ocorre quando ela não existe.

As pessoas podem se isolar, se destruir, ficar atormentadas. Outras podem até se suicidar por não aguentarem a pressão da sociedade, que neste caso tende a sufocar os indivíduos, fazendo que eles, muitas vezes, vivam se escondendo do grupo social. O isolamento é comum entre os indivíduos homossexuais que tentam evitar o preconceito. No entanto, os movimentos sociais já lutam de todas as formas para que os homossexuais não tenham de se isolar e possam viver sua afetividade e sexualidade como os heterossexuais, já que a ideia é sufocar o preconceito e não o indivíduo.
Fonte: Portal Ciência e Vida.
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Nós Estamos Aqui: O Pálido Ponto Azul

sábado, junho 20, 2009

Crise do capital e psicologia


De que maneira o sujeito é afetado pela angústia coletiva enfatizada pelas relações de trabalho e distribuição de riquezas e como o campo da psi pode ajudar neste momento

Por Denise Deschamps e Eduardo J. S. Honorato

O que é a "crise" que tantos falam atualmente? Este vocábulo adentrou a vida dos brasileiros nos últimos meses e, consequentemente, os nossos consultórios e locais de atuação profissional. Teria a Psicologia algo a dizer sobre o que se pensa atualmente em relação à crise do capital que agita nossa "aldeia global"? Fomos instigados por essa pergunta e ao analisarmos a questão, verificamos que há inúmeras perspectivas sob as quais a Psicologia teria como abordá-la. Escolhemos então uma, dentre várias outras, que poderiam ser construídas.

O mundo se agita preparando-se para o caos econômico, fatores estatísticos que aos olhos da prática da Psicologia ganharão contornos de angústia individual ou dos grupos. Os números caem sobre cabeças que na relação com eles produzem felicidade ou angústia. Como Freud já havia dito, enfatizam-se as tarefas humanas que serão sempre uma das nossas maiores fontes de gratificação ou sofrimento: o amor e o trabalho.

No efêmero nomeado por alguns teóricos como pós-modernidade, naquilo em que hoje o "ser" se amarra ao "ter", aos símbolos de status e cidadania que se constroem pelo prestígio social, o pertencer a essa ou àquela classe, nos perguntamos: como sobreviver à angústia de aniquilamento ante ao mundo real que impõe hoje restrições ao projeto de vida de uma grande maioria? E como pensar isso em um país como o Brasil, onde a distribuição de renda é uma das mais injustas?

Parece que o "tubarão" chamado "acumulação de bens" nos ameaça de várias frentes. Seria a tal crise cíclica do capital já descrita por Karl Marx e Engels1? Estariam os mais aptos devoradores incorporando os menores investidores financeiros do planeta? O quanto disso nos tem sido propagado em concepções que adentram nosso imaginário, em nosso cotidiano? Fazer perguntas simples como essas poderão nos dar a dimensão do que tem a Psicologia a dizer sobre tudo isso.

Se você sente angústia e depressão, quem sabe procurar medicamento antidepressivo não seja o melhor caminho?

Pensar o mundo em que se vive, trabalha e ama pode ser um começo de mudanças possíveis. Para Karl Marx2, "o que é exato para os seres humanos com seu trabalho, é exato também para os seres humanos entre si".

CONSTRUÇÃO DE ALICERCES

Entre capacitar o homem para a linha de produção e pensá-lo como construtor de seu meio, a Psicologia precisará, cada vez mais, problematizar sua prática e compor construções teóricas emprestando elementos de outras áreas de estudos. Tratará ao mesmo tempo o homem em seu meio ambiente cultural e dos instituintes dessa cultura. Do que é instituído como algo de aquisição de melhoria de vida e que se institui como modelo repressivo, causa dor, portanto, do adoecimento desse sujeito que forma e é formado pelo mundo em que atua.


Denise Deschamps é psicóloga com formação em Psicanálise, Socioanálise e Clínica Infantil - IBRAPSI/RJ; Formação em Psicoterapia de grupos - "Ateliê de Emoções" - Psicólogos Associados; supervisora clínica em Psicanálise. Atua em consultório particular, no Rio de Janeiro.

Eduardo J. S. Honorato é graduado pela Ulbra-Manaus. É psicólogo Perito Examinador de Trânsito (UFSC) e Psicanalista. Atua em consultório particular em Manaus. Cursa especializações em Saúde Pública (UFSC) e Docência Superior (UGF). Contatos: http://eduhonorato.wordpress.com/ ou eduhonorato@ hotmail.com

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O sono estimula a criatividade, segundo estudo

A pesquisa pode ter importantes implicações para entender como o sono, especificamente o sono REM, atua na formação de redes associativas no cérebro
Agência FAPESP

Problema difícil de solucionar? Faltou criatividade? Melhor deixar para lá e ir dormir. Segundo um novo estudo, o sono estimula a criatividade e a solução de problemas. A pesquisa pode ter importantes implicações para entender como o sono, especificamente o sono REM, atua na formação de redes associativas no cérebro.

Sono REM (sigla em inglês para "movimento rápido dos olhos"), também conhecido como sono paradoxal, é a fase caracterizada pela presença de sonhos e maior atividade neuronal do que a fase não-REM.

O estudo feito por Sara Mednick, da Universidade da Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos, e colegas mostra que a fase REM estimula diretamente o processamento criativo mais do que qualquer outra fase do sono ou mesmo durante o período em que se está acordado.

O trabalho será publicado esta semana no site e em breve na edição impressa da revista Proceedings of the National Academy of Sciences.

"Verificamos que, para questões ligadas ao que a pessoa está trabalhando no momento, a passagem do tempo é suficiente para encontrar as soluções. Entretanto, para novos problemas, apenas o sono REM é capaz de aumentar a criatividade", disse Sara.

Segundo ela, aparentemente o sono REM ajuda a chegar a soluções por meio do estímulo de redes associativas, permitindo que o cérebro estabeleça ligações novas e úteis entre ideias não relacionadas. Outro ponto importante é que essa característica não seria por conta de melhorias na memória seletiva.

Para identificar se as melhoras eram devidas ao sono ou simplesmente à redução de interferências - uma vez que experiências durante o período acordado interferem na consolidação da memória -, os pesquisadores compararam períodos de sono com períodos de descanso controlado sem qualquer estímulo verbal.

Aos participantes do estudo foram apresentados múltiplos grupos de três palavras e eles tiveram que falar uma quarta palavra que poderia ser associada com as demais. Foram feitos testes nas manhãs e no fim do dia, com os voluntários divididos entre três grupos: o primeiro que dormiu à tarde e atingiu o sono REM, outro que dormiu, mas não atingiu essa fase e um terceiro que ficou em descanso sem dormir.

Segundo o estudo, o primeiro grupo apresentou um aproveitamento 40% melhor nos testes feitos após o período de sono, enquanto os demais não mostraram resultados diferenciados.

Os pesquisadores sugerem que a formação de redes associativas a partir de informações previamente não relacionadas no cérebro, que levam à solução criativa de problemas, seria facilitada por mudanças nos sistemas neurotransmissores durante a fase de sono REM.

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sexta-feira, junho 19, 2009

Mecanismo de busca aprimora pesquisa por palavras e populariza estatísticas do idioma


Edgard Murano/ Ilustrações: Negreiros

O maior site de buscas da internet deixou sua marca não só na vida das pessoas como na do próprio idioma. Entre os neologismos que já produziu, "googlar" - sinônimo de pesquisar no Google - foi parar até no dicionário. Sem contar o bordão irônico "joga no Google", repetido sempre que alguém desconhece uma palavra. Essa espécie de "oráculo" da era digital, visto com desconfiança por alguns, adicionou ao seu método de pesquisa mais uma função, a "busca semântica", que está deixando os resultados de investigações na internet ainda mais interessantes e enriquecedores. Além desse recurso, o recém-lançado Google Insight for Search fornece aos internautas estatísticas sobre a incidência de palavras nas pesquisas realizadas por meio da ferramenta.

Funções matemáticas usadas pelo mecanismo de busca - os algoritmos - processam dados de 235 milhões de buscas feitas diariamente no mundo todo, criando associações a partir dos termos mais procurados e sites mais visitados, entre outros hábitos de navegação. Ao todo são mais de 200 critérios usados no processamento das informações hospedadas na rede mundial de computadores, com o intuito de organizá-las e torná-las acessíveis aos usuários.

Segundo o critério da busca semântica, ao digitar, por exemplo, a expressão "teoria da relatividade", além de conferir outros sites que possuam a mesma expressão, teremos no pé da página sugestões de termos afins como "física quântica", "Albert Einstein", "velocidade da luz" e até a fórmula mais popular da história, "e=mc2".

- Na verdade, a busca semântica é uma questão filosófica que ninguém definiu ainda. É uma expressão da ânsia de ir além do termo-chave, que às vezes se acha descontextualizado. Vemos isso como uma busca mais completa, que vai além da palavra. A busca hoje, como é concebida, depende da palavra. E não deveria ser. Deveria ser independente da palavra, mais completa, traduzindo a intenção ou o universo em torno do assunto buscado. Mas como o ser humano traduz o universo por meio da palavra, é por aí que começamos - afirma Felix Ximenes, diretor de comunicação do Google Brasil.

Estatísticas
Palavras corriqueiras como "bbb" ou "orkut" aparecem em quase todas as listas de termos mais procurados que o Google divulga anualmente - projeto conhecido como Google Zeitgeist ["espírito de época" em alemão]. À parte a pretensão de querer refletir sua época fixando as palavras mais populares, trata-se de uma lista interessante, porém limitada. Isso porque o mecanismo de busca é utilizado para diversos propósitos, não só como dicionário ou enciclopédia, inclusive por quem procura links ou atalhos para outros sites, o que pode "viciar" os resultados.

Digitar "orkut", por exemplo, nem sempre representa um interesse pela palavra em si, mas antes pelo acesso à rede social que leva esse nome. O mesmo engano se dá com as con­soantes "bbb", que não se trata de uma palavra que requer exatamente uma definição, mas que é sobretudo índice de um universo semântico subjacente (pulverizado em expressões como reality show, "paredão", "eliminado", "capa da Playboy" etc.) Em resumo, uma coisa é a ocorrência da palavra em blogs e portais de notícias; outra é quantas vezes as pessoas a digitaram como "ponte" para outros domínios virtuais. Tomado esse cuidado, a possibilidade aberta pelo Google é enorme ao campo da pesquisa do idioma.

Pesquisa das pesquisas
O Insight for Search pode ser considerado um desdobramento do ­Zeitgeist mais interessante e democrático, pois "instrumentaliza" estatísticas sobre a incidência de buscas por palavras e as coloca à disposição. Pode-se pesquisar a popularidade de um vocábulo por país, estado, mês, dia, ano, ocorrência junto a outros vocábulos, entre outros parâmetros. Essa espécie de "Google dos Googles" permite a qualquer pessoa obter números e gráficos sobre quão pesquisado foi o termo, além de listar seus correlatos. Mesmo que os números não sejam absolutos, deixando dúvidas sobre o universo da amostragem, seu mérito é organizar e facilitar um conhecimento que parecia impossível antes da internet. Para o bem ou o mal, agora todo internauta pode bancar o linguista amador e tirar suas conclusões acerca da popularidade das palavras.

Ligações perigosas
Basta digitar a palavra "crise", por exemplo, para que vejamos um gráfico registrando a incidência cada vez maior do temido termo ao longo de 2009. Trata-se, pois, de uma constatação empírica, e não é preciso ler vários jornais ou ver muita televisão para saber que se trata de um fato linguístico plausível. Porém, uma queda na quantidade de menções à palavra "crise" não significaria necessariamente um abrandamento da situação econômica; poderia sugerir antes certa prudência da imprensa e dos blogueiros em relação a um vocábulo que evoca privação.

Por outro lado, ao pesquisar palavras por estado, a característica interjeição "uai" dos mineiros é mais popular em seu estado de origem do que em São Paulo, o que é natural. O mesmo acontece com "tchê", que tem maioria esmagadora no Rio Grande do Sul; ao passo que "acarajé" é o campeão da Bahia não só em sabor como também em interesse entre os internautas baianos.
De posse dessa informação, ao depararmos com a expressão "receita de acarajé" ao pé da página, chegamos à conclusão de que os termos "acarajé" e "receita" vêm juntos na maioria das ocorrências e o desejo de aprender a receita deve ser uma das principais motivações dessas buscas. O céu é o limite para deduções acerca de estatísticas como essas, e é preciso cuidado com as generalizações.

Apesar da irresistível vontade de interpretar os resultados do Google indiscriminadamente, um caso ocorrido no começo do ano passado mostrou que todo sistema é passível de falhas. A cantora Preta Gil ameaçou processar o site de buscas, basea­da no resultado "condicionado" de pesquisa sobre seu nome. Na busca por imagens da ferramenta, quando alguém digitava a expressão "atriz gorda" o mecanismo sugeria como possibilidade de busca: "experimente também preta gil".

A menção desabonadora havia sido "forjada" por um truque chamado Google bomb ("bomba Google"), feito por blogueiros com motivações políticas ou humorísticas. A manobra consiste em enganar os algoritmos da ferramenta, interferindo de maneira artificial na percepção sobre qual é a associação mais correta. Foi a primeira vez no país que o mecanismo de busca era acusado de ser tendencioso, sugerindo uma correlação indesejada. À época, a filha de Gilberto Gil recebeu uma ligação de Felix Ximenes, do Google Brasil, que lhe pediu desculpas. O caso acabou bem, mas o advogado de Preta Gil chegou a acusar a empresa de danos morais. Afinal, quais seriam os limites da ferramenta?

Linguística de corpus
Questionamento semelhante tem o crítico Andrew Keen, autor de O Culto do Amador (Jorge Zahar, 2009). Ele é taxativo em suas considerações sobre sites de busca e a internet em geral, e classifica o mecanismo como "uma agregação de milhões de perguntas feitas coletivamente ao Google", de modo que a ferramenta só nos diz "aquilo que já sabemos". Keen subestima o conhecimento produzido por uma coletividade que navega pela internet digitando interesses materializados em palavras e expressões que talvez configurem uma nova etapa na organização do conhecimento.

Embora as associações produzidas pela ferramenta de busca ainda sejam elementares, menos precisas do que os sinônimos dos dicionários, escritos por humanos, o novo tratamento dado à palavra já é sinal de um salto qualitativo. Porém, não se pode dizer que o banco de dados pesquisado, no qual se baseia o Google, seja representativo do idioma ou possua metodologia científica. A linguística de corpus há muito faz buscas mais complexas que as disponíveis na internet - por classes gramaticais, gêneros, falantes da língua etc. - em certos corpora [plural de corpus, "amostragem"].

- O corpus do Google é a totalidade de arquivos de computador que a empresa copiou da web e gravou em seus computadores. É uma "caixa preta" guardada na vasta rede da empresa - afirma Tony Berber Sardinha, professor de linguística da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Segundo o professor, o corpus do Google é pouco representativo da conversação coloquial porque há poucas conversas transcritas disponíveis na internet. Por outro lado, o mecanismo representa melhor gêneros como blogs, por exemplo, que são "nativos" da grande rede mundial de computadores.

Abrangência
Só no Brasil são 40 milhões de internautas em atividade, segundo o Ibope/NetRatings. De um total de 6 bilhões de habitantes no planeta, "só" 1 bilhão acessa a internet, de modo que a adesão crescente de pessoas à rede resulta na incorporação de cada vez mais interesses e assuntos a esse "vocabulário" global. Os conteúdos não param de crescer. Segundo estatísticas do Google, de cada busca efetuada no mecanismo, 20% dos conteúdos apresentados são novos, não haviam aparecido na pesquisa anterior.

Já o projeto de digitalização de bibliotecas do planeta, pelo Google Livros, está a todo vapor, com novo fôlego depois de fechar acordo com representantes dos direitos autorais americanos. Acresça a esse banco de dados o crescente acervo do Google Acadêmico - ainda incipiente, com teses e dissertações acadêmicas - para concluir que em poucos anos essa base de dados será assustadoramente maior.

- O ideal seria ter um corpus tão vasto quanto o do Google, disponível para o grande público por meio de uma interface simples e rápida, mas que permitisse buscas mais detalhadas e trouxesse resultados mais confiáveis, coisas que o Google não permite. Mas esse mundo dos sonhos de internautas, professores e pesquisadores está cada vez mais perto - afirma o professor Berber, referindo-se ao Corpus Brasileiro, um projeto liderado por ele e financiado pela Fapesp, sediado na PUC-SP.

Trata-se de um corpus gigantesco do português brasileiro, com 1 bilhão de palavras, que estará disponível de graça na web a partir de 2010 e permitirá buscas rápidas e confiáveis, não só por palavras, como por expressões e classes gramaticais.

Se para a ciência as ferramentas do Google ainda se restringem ao campo da experimentação, a empresa vem se dedicando ao aperfeiçoamento de projetos já existentes, que aos poucos vão sendo lançados em outros idiomas, como o português.

- A língua portuguesa está na lista de prioridades do Google. Nossos produtos serão lançados no idioma em tempo real com outros países, já que o português é uma das principais línguas da internet hoje - afirma Ximenes.

Se, como quer o crítico Andrew Keen, o Google nos diz coisas que já sabemos, esse "nós" implica muita gente. Contribuir para um imenso banco de dados e utilizá-lo eticamente são os novos desafios que a era tecnológica nos impõe. Cabe aos internautas digerir as novidades e informações da rede mundial, policiando-se para não tirar conclusões precipitadas. Só o tempo, o grau de aprimoramento dessas ferramentas e o senso crítico do usuário poderão dizer o quanto podemos confiar nelas. Até lá, o universo de possibilidades de aplicação para o mecanismo é grande para a pesquisa. A palavra, ao que tudo indica, continuará a ter um papel vital na internet.

Fonte: revista da Língua - ver marcadores


Uvas desconhecidas, Vinhos fascinantes


Por Luiz Gastão Bolonhez

M
uita gente está acostumada a conhecer os vinhos pelos nomes de suas uvas. Isso, obviamente, não é um sacrilégio, apesar de ser um pouco de preconceito. Especula-se que todo enófilo que se preze conhece Cabernet Sauvignon, Merlot, Pinot Noir, Syrah, Malbec, Nebbiolo, Chardonnay, Sauvignon Blanc e até Carménère - que ultimamente ganhou mais exposição no Brasil devido a uma enxurrada de vinhos varietais à base dessa especial cepa francesa, que fez fama no Chile.

Pois bem, muitos estão bitolados em algumas uvas. É lógico que vinhos elaborados a partir das castas citadas acima são, em sua maioria, excepcionais. A partir, por exemplo, da Cabernet Sauvignon e da Pinot Noir, temos os mais badalados, procurados, caros e requisitados vinhos do mundo, principalmente os provenientes da França. A Borgonha, com exclusividade na Pinot Noir em seus tintos, e Bordeaux, com a Cabernet Sauvignon liderando os famosos cortes, são religiões entre os mais apaixonados por grandes vinhos.

Nem tudo que é bom é Cabernet

A inspiração para tal empreitada nasceu em 2008, em um jantar com o Sr. Miguelàngel Cerdá, proprietário de uma bodega Anima Negra, localizada na ilha de Palma de Mallorca, costa mediterrânea na Espanha. Miguelàngel começou apresentando seu branco e, para a surpresa de todos, a uva predominante era chamada de Moll. Vocês já ouviram falar? Pois bem, esse vinho, denominado Quibia 2007, estava excelente. Parou por aí? Não! Os próximos, os tintos, eram todos de castas desconhecidas. E foi o AN 2004, produzido com predominância da cepa Callet, que tirou suspiros de todos. É muito, mas muito difícil alguém ter ouvido falar sobre essa uva. Talvez nem o tenista Rafael Nadal e sua família, oriundos de Mallorca, tenham ciência dela.

Itália, gama sem fim de uvas indígenas

Único país do mundo a produzir vinhos em todas as regiões, a Itália oferece uma infinidade de uvas autóctones que vão de norte a sul, incluindo o arquipélago da Sicília e a ilha da Sardenha. É impressionante como elas são únicas e com tipicidade. Na maioria das vezes, essas castas representam uma região ou uma denominação de origem.

Aqui vale uma dica importante (pois é cada vez mais difícil comprar um Barolo ou um SuperToscano - já que os preços sobem de maneira quase injustificável): é nesse espaço que o enófilo deve penetrar, pois temos vinhos espetaculares fora do eixo Piemonte e Toscana.

Norte da Itália Friuli, Alto Adige, Trentino e Vêneto Moscato Rosa

A Moscato Rosa é uma uva da família da Moscato, somente encontrada no Alto Adige, na Itália, e em algumas regiões da Áustria e Alemanha. Nestes dois últimos países, ela é chamada de Rosenmuskateller. É uma vide com cachos de cor rubi, que pode produzir desde vinhos secos a espumantes e alguns doces - sendo estes últimos os mais diferentes e únicos dentre todos. Seus fermentados são quase sempre perfumados, com muita carga floral e predominância de rosas. São elegantemente doces, porém sem excessos.

Ribolla Gialla

No Friuli, podemos encontrar uma série de castas únicas e escolhemos a branca Ribolla Gialla. Encontrada em plantações nas DOC (Dominazione de Origine Controlatta) de Collio (Goritzia) e Colli Orientali (Udine), bem como logo após a fronteira, já na Eslovênia, onde é chamada de Rebula. Seus vinhos são de uma acidez penetrante, com boa carga mineral (sílex) e leves tons frutados, com destaque para cítricos. Não é um fermentado com nuances doces. É straight to the point. Uma bela experiência para quem aprecia brancos secos e com muita personalidade.

Refosco dal Pedunculo Rosso

Ainda do Friuli, e com boa quantidade de hectares plantados, temos a tinta Refosco dal Pedunculo Rosso, que, como a branca Ribolla, tem alto grau de acidez, mas produz vinhos bem escuros, com taninos muito presentes e nuances verdes (marcante teor herbáceo). Se não colhida com boa maturação, seus taninos são sólidos como rocha e muito duros para serem apreciados. É uma uva de maturação tardia que, na grande maioria dos casos, produz fermentados longe de madeira - o que mantém suas características e tipicidade.

Teroldego

Na região do Trentino, temos uma das mais espetaculares cepas de toda Itália, a quase desconhecida Teroldego - que é a tinta mais importante das Dolomitas. Dolomitas é uma sub-região que possui uma estrada chamada de "Estrada das Dolomitas", que liga a lindíssima cidade de Cortina D'ampezzo a Bolzano, já quase no Tirol austríaco.

A Teroldego reina nessa região e praticamente só existe por lá. Ela tem características muito interessantes, produzindo desde vinhos jovens e agradáveis, até monumentos que podem envelhecer por décadas. Quando feitos para guarda, sempre mantêm seu caráter frutado com ameixas e amoras, seguidos de toques defumados. Seus fermentados são comumente carregados de tons terrosos e levemente herbáceos. É um primor que agrada também os amantes da Syrah, já que elas possuem algumas características semelhantes. Para se ter uma ideia, em 2002, durante a maior feira de vinhos do mundo, a VinItaly, o Foradori Granato 1999, um Teroldego 100%, foi eleito o melhor vinho em um programa de televisão famoso por lá, chamado Porta a Porta, comandado por Bruno Vespa.

Corvina

No Vêneto, temos uma uva que muitos enófilos conhecem, pois é mestra na produção dos Valpolicellas, Bardolinos e dos famosos Amarones. Uma cepa que, caso não seja tomado o devido cuidado com relação à superprodução, pode produzir vinhos ralos e sem muita personalidade, como a maioria dos Valpolicellas e Bardolinos - que chegaram a ser moda por aqui uma década atrás. Trata-se da Corvina que, quando é cultivada com esmero e com controle, pode produzir vinhos surpreendentes, muito especiais. Nessas circunstâncias, temos um fermentado perfumado, com excelente carga de frutas negras (cerejas) e encantadores toques florais.

Sagrantino di Montefalco, excelente para a saúde

Os umbros costumam se orgulhar e dizem de boca cheia que a casta Sagrantino é a que mais polifenóis contem. Os polifenóis são os responsáveis por um sem fim de benesses à saúde. Sua liderança neste quesito é controversa, mas, se não for a número um, esta cepa está entre as mais ricas nestas substâncias. Seus derivados são retintos, escuros, com impressionantes taninos e uma personalidade incomum. Podemos ter também fermentados doces à base dessa uva, mas, são os secos que têm conquistando, dia a dia, mais adeptos por vinhos com opulência, corpo e intensidade.

Sul da Itália e Sicília Nerello Mascalese

No sul da bota e em suas ilhas, temos uma gama impressionante de uvas. Destacam-se, porém, duas entre as tintas e três entre as brancas, pois produzem vinhos de excelente qualidade. Na Sicília (atualmente uma das maiores sensações da Itália), quando tratamos de bons vinhos, temos - nas cercanias do vulcão Etna - algumas castas autóctones como a Nocera, a Nerello Capuccio e a Nerello Mascalese. Esta última predomina em fermentados fabulosos, e, o mais interessante, traz produtos elegantes e com uma finesse mais que o normal para italianos - e mais ainda quando se trata da Sicília.

Apesar de ser uma uva com bom potencial de álcool, ela não produz vinhos muito profundos e concentrados. É, muitas vezes, mesclada com a mais intensa Nero d'Avola e também com sua irmã, a Nerello Capuccio. Para amantes de líquidos elegantes, provar um Nerello Mascalese de estirpe é um must.

Inzolia

Ainda na Sicília, temos a branca Inzolia, que resulta em vinhos muito frescos, com toques picantes. Quase sempre ela traz fermentados deliciosos e fora dos padrões, respeitando muito as características de seu terroir.

Fiano

A Fiano, também chamada de Fiano di Avelino, é uma estrela do continente. É um dos destaques da Campania, mas brilha também em terras sicilianas. Na sua máxima expressão, produz vinhos com bom peso, nuances doces no nariz, notas de flores e tons de especiarias. Não são fermentados longevos e devem ser consumidos entre dois e três anos, no máximo.

Aglianico

A Aglianico é talvez a maior vedete dentre as cepas tintas do sul da Itália, pois é encontrada na Campania, Basilicata, Calábria e Apulia. Nas duas primeiras regiões, gera desde vinhos simples até esculturas líquidas. Seus fermentados mais conhecidos são: o Aglianico del Vulture (única denominação de origem da Basilicata, em que as uvas são plantadas entre 450 e 600 metros acima do nível do mar, em solos vulcânicos no monte Vulture) e o famosíssimo Taurasi (da Campânia). Os Taurasi, dignos representantes dos melhores Aglianicos, são muito intensos, concentrados e firmes, com muita personalidade e força.

As multinacionais Petit Verdot

Ao contrário da máxima do terroir, existe uma grande gama de produtores de vinhos que não tem muita preocupação com as uvas autóctones. Essa linha é representada por produtores que dizem: "meu objetivo é fazer o melhor vinho possível, independentemente de tradição e da casta que representa determinado local". Ouvimos recentemente isso do genial empresário italiano, Andrea Franchetti, que possui propriedades na Toscana e Sicília e que tem vinhos entre os mais cobiçados, especiais e caros da Itália. Um homem revolucionário. Na Toscana, Andrea só produz fermentados a partir do quarteto bordalês, Merlot, Petit Verdot, Cabernet Sauvignon e Franc.

Na Sicília, ele respeitou, em parte, a já citada Nerello Mascalese, alma de um de seus vinhos dessa ilha, mas arrancou dois hectares de Nerello e plantou, em seu lugar, a Petit Verdot - que é a base (na maioria das vezes varietal) de seu vinho ícone, de nome Franchetti.

A Petit Verdot é, dentre todas as uvas bordalesas, a que mais tempo leva para chegar à maturação. Normalmente, ela é usada para dar estrutura e cor nos cortes de Bordeaux e tem sido, ultimamente, uma das maiores febres mundo a fora. Muitos países investiram nessa casta e, hoje, podemos encontrar deliciosos Petit Verdot na Argentina, Chile, Califórnia, Austrália e, principalmente, Espanha.

Seus vinhos costumam ser muito escuros, densos, com aromas de fruta negra madura e boa carga floral, com destaque para violetas. No palato, apresentam sempre muita força, personalidade e pungência. Nunca espere, por exemplo, de um Petit Verdot puro, elegância, mas, sim, sempre potência e força.

Carignan

Mais uma cepa francesa que tem conseguido novos adeptos mundo afora é a Carignan. Uma das mais plantadas no Languedoc Roussillon, ela tem muita penetração também na vizinha Espanha. Por lá, é conhecida como Cariñena e tem presença forte nas regiões da parte superior do rio Ebro (Rioja, Navarra e Aragon) e ainda no Priorato e Catalunha. Na Itália, com o nome de Cariñano, faz sucesso na Sardenha, onde divide com a Cannonau (como a Grenache é conhecida por lá) o título de mais importante dentre as tintas.

Atualmente, o Chile é talvez o país com mais ofertas de vinhos produzidos com a predominância dessa interessante uva, já com muitos reconhecimentos internacionais. Apesar de não estar passando ainda pelos mesmos momentos gloriosos que teve no século passado - pois teve certa decadência nos últimos anos -, a Carignan tem se recuperado e provado que é uma ótima alternativa para vinhos com raça e tipicidade.

Se não trabalhada com esmero nas vinhas, chega a produzir impressionantes 20 toneladas por hectare, o que resulta em fermentados ordinários, ralos e sem expressão. Seus bons vinhos, normalmente de vinhas mais antigas, possuem características interessantes, como sua bela cor (tons muito escuros), taninos em abundância, uma presente acidez e certa adstringência, o que lhe concede uma característica muito interessante, quase sempre fora do óbvio. O trabalho do agrônomo é fundamental para que tenhamos produtos de qualidade a partir da Carignan. Sol e boa drenagem são fundamentais para obtenção de bons resultados.

Mourvèdre

A terceira cepa dessa seleção "uva sem fronteiras" é a Mourvèdre, também conhecida como Monastrell na Espanha, e ainda Mataró, principalmente para os australianos e californianos. Esta controversa cepa produz seus melhores vinhos na Provença e no sul do Rhône, na França, no sul e centro da Espanha, e na Califórnia. É mais conhecida pelo nome francês, mas é de origem espanhola. Normalmente, a Mourvèdre é utilizada em blends com a Grenache, sendo muito usada em largas quantidades em alguns grandes Châteauneuf-du- Pape, como o renomadíssimo Château de Beaucastel.

As principais características dos vinhos à base dessa uva são: cor não muito intensa, taninos em boa quantidade, estilo selvagem, aromas herbáceos e boa carga de cassis, mirtilos, cerejas e ameixas negras. É mola mestra de um dos mais renomados fermentados da Catalunha: Conca de Barberá Gran Muralles, da Vinícola Torres, e do charmoso Château de Pibarnon de Bandol, produzido nas cercanias de Toulon, na Provença.

A Pinot Gris da Alsácia, Espetaculares secos e monumentais doces

A produção de vinhos secos e brancos com características fabulosas não é para qualquer um. Poucas uvas conseguem essa distinção, como a exuberante Pinot Gris da Alsácia. Antes, era chamada de Tokay D'Alsace ou Tokay Pinot Gris, mas a União Europeia decidiu que só os húngaros podem utilizar o nome Tokay em seus vinhos.

A Pinot Gris da Alsácia é a mesma que a Pinot Grigio italiana e a Grauburgunder alemã. A alma dessa uva é muito interessante, pois, na Alsácia, desenvolveu- se sobremaneira, produzindo desde excepcionais brancos secos até doces que podem se equiparar aos melhores Sauternes.

Na versão "seca", aporta muito perfume, boa carga de doçura nos aromas, frutas secas (como castanha do Pará), toques especiados e fundo mineral. Esses vinhos são quase sempre muito exóticos e podem ser boa companhia para pratos asiáticos, porco e ganso, repletos de condimentos. São, sem dúvida, uma ótima alternativa para grandes brancos cheios de força e personalidade, pois são os mais encorpados da França ao lado de grandes nomes da Borgonha.

Na versão "doce", podemos encontrar os Vendanges Tardives, com uma boa quantidade de uvas atacadas pelo Botrytis cinerea (a "podridão nobre"), e a versão mais espetacular, os Selection des Grains Nobles, produzidos a partir de uvas 100% atacadas pela "podridão nobre". Estes últimos são verdadeiros néctares, com preços de tirar o fôlego de qualquer amante por vinhos.

Viura, De vinhos ordinários a verdadeiras jóias

Viura é como é conhecida a casta branca não muito aromática na região da Rioja, Espanha. Seus outros nomes são Macabeo, Maccabéo ou Maccabeus - usados no Languedoc Roussillon, onde é vastamente plantada. Essa cepa é double face, pois dela temos um sem fim de vinhos insossos e simples, tanto do sul da França quanto em toda Espanha, com mais ênfase na Catalunha e centro.

Contudo, podemos encontrar, na França, bons brancos nas regiões de Corbieres e Minervoies. Mas, é na Rioja que essa resistente uva produz vinhos brancos de uma profundidade incomum. Seu passado não é tão nobre e ela era utilizada na composição de tintos para baixar a dureza dos taninos e a acidez. Isso, em menor proporção, ocorre até hoje na Rioja.

Sua versatilidade é interessante, pois pode ser vinificada em aço inoxidável. Porém, também acolhe a vinificação em barricas de carvalho nobre com boa performance. É uma uva de difícil manuseio, pois, se colhida antes da hora, produz vinhos com pouco aroma e, se deixada por muito tempo na vinha, perde o equilíbrio e a acidez fica desbalanceada.

Hoje, na Rioja, essa cepa representa 15% da área total plantada, atingindo cerca de 7.500 hectares. Seus vinhos de boas bodegas, vinificados e envelhecidos em barris de carvalho, são de cor amarelo profundo, com caráter de frutas como toranja (tradução em português de grapefruit ou pomelo), além de ter uma resistência incrível. Os Gran Reserva de base Viura da Rioja são, sem dúvida, os brancos mais longevos do mundo. É uma experiência incrível provar um Gran Reserva da Viña Tondonia com 20 anos de idade. Um branco ainda jovem, mas sedutor e com incrível persistência.

Portugal, muito mais que Touriga Nacional

Portugal é também um país rico em diversidade de uvas. As cepas autóctones são muitas e já temos uma que está muito famosa: a deliciosa e encantadora, Touriga Nacional - talvez a grande mola mestra dos vinhos do Douro, que encantam o mundo. Mas, na terra de Cabral, existem muitas outras castas interessantes. Escolhemos uma branca e duas tintas, que fazem sucesso por lá.

Encruzado

A branca Encruzado, com origem no centro do país (mais precisamente no Dão), é muito especial e resulta em produtos com estrutura fabulosa, longevos e muito presentes. Tem potencial para ser fermentada em barrica, o que ocorre na maioria de seus vinhos top. A madeira normalmente agrega muito valor aos fermentados produzidos a partir dessa casta. Eles costumam ser elegantes, com firmes aromas florais e herbáceos. Primam pelo excelente equilíbrio entre fruta, acidez, madeira e álcool.

Alicante Bouschet

Já a tinta Alicante Bouschet é de origem francesa. É a cruza da Petit Bouschet com a Garnacha Tintorera, criada por Henri Bouschet em 1866. A ideia da cruza era para ter uma uva que desse mais cor aos vinhos. A Alicante Bouschet produz vinhos quase negros. Na França, essa cepa foi plantada em Bordeaux, Vale do Loire e até na Borgonha. Lá, ela vive um retrocesso e já está praticamente extinta em algumas regiões.

Sua maturação é das mais rápidas e a produção pode chegar a mais de 20 toneladas por hectare. Concede aos vinhos excelente cor, bons taninos e excelente frutosidade. De todos os países no mundo, tem mais destaque hoje em Portugal, mais especificamente no Alentejo, onde podemos encontrar alguns ótimos varietais e vários cortes com bom destaque.

Alfrocheiro Preto

A última casta é "portuguesa com certeza". A Alfrocheiro Preto, também conhecida só como Alfrocheiro. Podemos encontrá-la na Bairrada, Dão, Terras do Sado e Alentejo. Foi introduzida no Dão mais fortemente após a filoxera. Seus fermentados são de cor profunda, muito especiados, com fruta madura (destaque para o cassis) e excelentes taninos, tendendo para mais suavidade. Também é muito usada como blend. Mas, às vezes, podemos encontrar alguns bons varietais. Vale a pena provar.

Novas estrelas espanholas

De todos os países do novo mundo, não há dúvida que o que mais revolucionou o estilo de seus vinhos é a Espanha. A modernidade chegou aos domínios do rei Juan Carlos e coloca esse país no cenário mundial com produtos diferentes, alegres e com muito estilo. Destacamos dois verdadeiros fenômenos, a Mencía, que é absoluta na DOC de Bierzo, e a Callet, uva nativa da ilha de Palma de Mallorca.

Mencía

A Mencía é uma casta que deixa alguns rastros, tais como sua semelhança com a Cabernet Franc e com a portuguesa Jaen. Essa cepa vem mudando o rumo e colocando a pequena DOC de Bierzo no mapa dos grandes tintos espanhóis. Antes, ela produzia vinhos ligeiros, macios, com boa acidez e excelente carga de frutas, com morangos e cassis. Ultimamente, contudo, com um trabalho mais forte na videira e com rendimentos baixos, ela traz vinhos espetaculares, firmes e com muito estilo. Vai muito bem in natura, ou seja, sem madeira, assim como evolui bem quando passa por estágio em barricas de carvalho.

Talvez o grande nome responsável pela ascensão dessa uva seja o genial riojano Alvaro Palácios, que, depois de colocar seus Prioratos entre os fermentados mais caros da Espanha, dedicou-se a uma vinícola no caminho de Santiago de Compostela, produzindo verdadeiras esculturas líquidas a partir da Mencía. Essa casta, hoje, é uma grande tendência na Espanha.

Callet

A Callet - uva de dificílima análise, pois não há registros de onde ela vem exatamente - é um monumento. Seus vinhos ficam com a elegância de um delicioso Pinot Noir aliado à força de um belo Syrah. Para se produzir grandes vinhos, vinhas velhas são fundamentais. Algumas destas vinhas de Callet na ilha de Mallorca chegam a produzir somente 300 gramas por cepa, o que a coloca entre os rendimentos mais baixos de que se tem registro. Caráter, presença, elegância e um misto de sutileza e força, são as principais características de vinhos produzidos com predominância da Callet.

A branca Assyrtiko em Santorini, na Grécia

A ilha de Santorini, na Grécia, é um dos maiores cartões postais do mundo.

A magia dessa ilha, com suas lindíssimas praias e um pôr do sol dos mais belos do planeta, tem, além disso tudo, uma estrela, a casta "branca" Assyrtiko. A uva também é plantada em outras regiões da Grécia, como Ática, Halkidiki e Drama. No entanto, é nos solos vulcânicos de Santorini que podemos encontrar seus melhores exemplares. Seus fermentados têm muita personalidade, alto grau mineral, bom volume de frutas e uma presente acidez. Essa quase inexplorada cepa tem todas as características para ser uma grande estrela de nível mundial quando o assunto é brancos elegantes, secos e com muita vivacidade.

Savagnin, uma religião do Jura, na França

A Savagnin é a uva do famoso Vin Jaune, uma verdadeira jóia na França, mais especificamente no Jura, pois não há nada similar no país que possa ser comparado a tal. Talvez a comparação pelo estilo se dê com os vinhos de Jerez, pois o processo de produção possui certa congruência. O que difere os Jerez dos Vin Jaune é a adição de aguardente vínica, que só ocorre nos espanhóis.

Podemos ainda ter brancos secos a partir da Savagnin com características muito parecidas às do Vin Jaune e, por consequência e analogia, às dos Jerez.

A uva em questão tem maturação Savagnin compõe o famoso "Vin Jaune" tardia, atingindo condições ideais de colheita em novembro e, às vezes, entrando em dezembro.

Normalmente, os vinhos após a fermentação são colocados em grandes barris de carvalho usado por alguns anos (no Vin Jaune é obrigatório o período de seis anos e três meses antes do engarrafamento) para a maturação. Com muitos anos de oxidação, os fermentados têm caráter único, com muita fruta seca, maçã verde e uma penetrante acidez. Provar vinhos provenientes da Savagnin é uma experiência única. Muito forte como aperitivo (início de um evento enogastronômico) e excelente com queijos de fortes de massa mole.

fonte: revista adega.

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