Por Fátima Caropreso
Fátima Caropreso é doutora em Filosofia e pós-doutoranda no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp.
No texto O futuro de uma ilusão (1927) Freud define "cultura" ou "civilização" como tudo aquilo no qual a vida humana se elevou acima de suas condições animais e se distingue da vida animal. Por um lado, diz ele, a cultura abarca todo o saber e o poder-fazer que os homens têm adquirido para governar as forças da natureza e lhes arrancar bens que satisfaçam suas necessidades. Por outro lado, compreende todos os meios usados para regular os vínculos entre os homens e para regular a distribuição dos bens entre eles. Este último aspecto da cultura (a regulação dos vínculos entre os homens), como veremos, seria a fonte principal do mal-estar inerente à vida humana, mas seria, ao mesmo tempo, a condição de sua existência.
"A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz" FREUD
Essas duas orientações da cultura não são independentes, argumenta Freud. Primeiro, porque os vínculos recíprocos entre os seres humanos são profundamente influenciados pela medida de satisfação das necessidades pulsionais que os bens existentes tornam possível. Segundo, porque o ser humano individual pode se relacionar com seu semelhante como se fosse ele mesmo um bem, por exemplo, quando explora a sua força de trabalho. E, em terceiro lugar, porque todo indivíduo é virtualmente um inimigo da cultura, a qual, contudo, está destinada a ser um interesse humano universal.
No texto Mal-estar na cultura, Freud se pergunta o que os seres humanos querem alcançar na vida e responde que seu objetivo é atingir a felicidade e mantê-la. No entanto, o máximo que conseguem é gozar de uma felicidade momentânea, resultante, na verdade, da satisfação de necessidades retidas com alto grau de estase. Só podemos gozar o "contraste", diz ele, e nunca o estado.
Por exemplo, sentimo-nos felizes quando encontramos alguém amado que há tempo não víamos, mas o estado de felicidade que vivenciamos nos primeiros momentos do encontro, logo se dissipa, dando lugar a um sentimento menos intenso. Mas se os momentos de felicidade são raros, os de infelicidade são bem mais frequentes, discorre o autor.
O sofrimento nos ameaça de três lados:
1) a partir do corpo, que destinado à ruína, não pode evitar a dor e a angústia;
2) a partir do mundo externo, que nos ameaça com suas forças hiperpotentes;
3) a partir dos vínculos com os outros seres humanos.
As duas primeiras fontes de sofrimento nos parecem facilmente compreensíveis e inevitáveis, embora, é claro, possamos fazer muito para amenizar o sofrimento por elas provocado. Já a terceira nos causa certa estranheza, dado que aparentemente parece ser supérflua. No entanto, ao julgarmos essa terceira fonte de sofrimento como algo que poderia ser evitado, nos enganamos.
Tendo em vista a gênese e as condições de manutenção da civilização, a relação entre os homens seria fonte inevitável de sofrimento, segundo o pensamento freudiano.
Os vínculos entre os seres humanos são influenciados pela medida de satisfação das necessidades pulsionais que os bens existentes tornam possível
Segundo Freud, o passo cultural decisivo, no âmbito das relações entre os homens, teria sido a substituição do poder do indivíduo pelo da comunidade. Antes disso, os vínculos entre os homens teriam estado submetidos à arbitrariedade de alguns indivíduos: aqueles de maior força física dominariam os demais de acordo com seus próprios interesses e necessidades.
A partir de certo momento, o poder do indivíduo passa a ser condenado como "violência bruta" e o poder da comunidade se contrapõe como "direito" àquele do indivíduo. Como consequência, surge uma limitação das possibilidades de satisfação (dos impulsos agressivos e sexuais) que os membros da comunidade até então desconheciam. Nesse momento, portanto, a maior parte dos homens troca parte de sua liberdade por uma maior segurança.
O próximo requisito cultural que se torna necessário é a justiça, ou seja, encontrar meios para garantir que a ordem jurídica estabelecida não seja quebrada para favorecer a um indivíduo ou grupo.
O desenvolvimento cultural passa, então, a buscar evitar que as leis que regem os homens sejam expressão da vontade de uma comunidade restrita (de um extrato da população, de uma etnia...), que pudesse voltar a se comportar a respeito do restante da população como o faria um indivíduo violento.
O resultado desse processo seria, então, alcançar certa regulação para os vínculos entre os homens, à qual requereria destes certa renúncia de suas satisfações pulsionais, mas lhes garantiria, em compensação, que ninguém fosse vítima da violência bruta. Tendo isso em vista, conclui Freud: "a liberdade individual não é um patrimônio da cultura", pois o desenvolvimento cultural impôs aos homens certa limitação de sua liberdade; e boa parte da luta da humanidade gira em torno da tarefa de encontrar um equilíbrio entre as demandas individuais e as exigências culturais das massas.
Repressão sexual
Uma das bases sobre a qual se edifica a cultura é a repressão da sexualidade, pois ela retira parte da energia psíquica necessária para a sua manutenção da limitação da satisfação sexual direta, ou seja, ela exige que os homens usem parte de sua energia sexual para o trabalho e para outras atividades culturais.
Assim, diz Freud, a cultura se comporta em relação à sexualidade como um povo que submete outro para explorá- lo. Essa limitação da sexualidade, contudo, não é algo facilmente alcançado.
É necessário um trabalho de domesticação das pulsões sexuais desde o início do desenvolvimento psíquico do indivíduo, o que faz que seu primeiro passo consista na proibição das exteriorizações da vida sexual infantil.
"É quase impossível conciliar as exigências do instinto sexual com as da civilização" FREUD
A cultura acaba, então, impondo a reivindicação de uma vida sexual uniforme para todos os seus membros: a escolha de objeto do sujeito sexualmente maduro é circunscrita ao sexo contrário; a maioria das satisfações não genitais é proibida como perversão; além da exigência de monogamia e legitimidade das relações. Em outras palavras, a cultura só permite relações sexuais sobre a base de uma ligação definitiva e indissolúvel entre um homem e uma mulher.
O máximo que os homens conseguem é gozar de uma felicidade momentânea, resultante, na verdade, da satisfação de necessidades retidas com alto grau de estase
No entanto, esta exigência de vida sexual uniforme imposta aos indivíduos, argumenta Freud, não leva em conta as desigualdades na constituição sexual inata e adquirida dos seres humanos, o que acaba por distanciar grande parte deles do gozo sexual.Muitas pessoas não conseguem satisfizer-se sexualmente a partir das atividades sexuais consideradas legítimas e, dado que a sexualidade consiste em uma necessidade humana - assim como a de alimentação, respiração e tantas outras -, a impossibilidade de obter satisfação sexual acaba levando muitos homens a adoecer psiquicamente.
As pulsões sexuais insatisfeitas buscam uma forma de satisfação substitutiva por meio dos sintomas neuróticos. Dessa maneira, a repressão da sexualidade converte-se em uma das fontes de sofrimento impostas pela cultura aos homens. Freud conclui, então, que "a vida sexual do homem culto recebeu grave dano (...) podemos supor que experimentou um sensível retrocesso quanto ao seu valor como fonte de felicidade". (Freud, 1930, p.103).