quinta-feira, dezembro 17, 2009

Multiplicando Pães


Crise, palavra pessimista, foi trocada nos anos setenta pelo significado chinês de “oportunidade”, palavra otimista. No entanto, o pessimismo e o otimismo são lados de uma mesma moeda: o desejo de controle. O que não queremos aceitar é que uma crise é convulsão, é involuntária, é fronteira entre nossa atitude e a vida.

A crise é percebida como escassez e se dá mais na relação com a vida do que na realidade. Esquecemos que a vida é em si abundância, um fenômeno para além do descrito por Darwin. Não é a competição que faz a vida, é o compartilhar; não é a escassez que determina o vencedor, mas a capacidade de se relacionar com o meio ambiente de uma forma abundante.

A ecologia, por exemplo, martela a idéia da escassez. Verdade que a mentalidade da falta favorece a contenção, mas também o desejo por acumulo, a competição e o foco na míngua. A penúria é sempre localizada na insuficiência do recurso e nunca na relação de insatisfação. E sobre isso muito tem a dizer o profeta bíblico. Há 25 séculos disseram que a grande evolução espiritual seria de ordem econômica e ética. E se daria na mudança de foco da escassez para a abundância. Não seria a oferta e a demanda que ditaria os valores, mas os valores internos que regulariam a relação com a oferta e a demanda do momento. E eles nos ofereceram um “case”, um modelo experimental:
O profeta Eliseu se viu com cem homens tendo apenas vinte pães. Seu servo disse: “Como hei de pôr isto diante de cem homens? E disse ele: Dá para que comam; comerão, e sobejará”. Comeram e sobrou.

O racionalista lê esta passagem como piedosa desprovida de realidade. Já o crente a lê como uma prova de milagre, de que a realidade é moldável à moral e às expectativas de bondade. Ambas atendem ao desejo de controle e não abarcam o sentido do profeta. O profeta não produz mais pães. Só existem vinte. O que o ele promove é uma relação distinta com a vida. Para que vinte pães alimentem cem homens é necessária uma nova relação com estes recursos. Se o seu foco for a escassez irão matar uns aos outros. O que eles precisam é descobrir alternativas que resgatem a abundância. O profeta não interfere na realidade de oferta e demanda, mas estabelece uma nova relação com o recurso, uma nova economia. A fartura dessa nova relação se dá em ativos de natureza diferente. Há ativos do tipo “soma-zero” que não se reduzem e escasseiam na divisão. Óbvio isto não ocorre com a riqueza ou o poder, mas sim com o conhecimento, a confiança, a amizade, a gentileza e o amor. Esses artigos não rareiam com a divisão, ao contrário, se multiplicam. Só fazendo uso deste tipo de comodities vinte pães podem satisfazer e sobrar para cem homens. Somente elas poderão incluir uma nova metade esquecida da população mundial que quer desfrutar de abundância já que isso não se fará pelos recursos, mas por uma nova relação com a vida.

Nossa relação é equivocada. Olhamos o espaço e o percebemos escasso. A terra não é o lote, o hectare; mas a relação com a vida. Olhamos nosso tempo e o percebemos escasso. Os momentos não são as horas, os dias, a longevidade; mas as escolhas de cada instante. Não há escassez na interação que o espaço promove e não há escassez nas escolhas que o tempo permite.

As crises são advertências daquilo que é, mas não queremos aceitar. Não se trata de conformismo, mas economia. A multiplicação dos pães não virá nem por ilusão ou hiper-realismo. Estará sempre disponível à espécie que souber sair da zona de conforto e se guiar pela abundância, que é por onde a vida passa.



Artigo publicado em:
O GLOBO - 1º CADERNO - OPINIÃO - 27 de setembro de 2008



Rabino Nilton Bonder