A vontade é o elemento fundamental a fim de trazer o sentido das coisas e do mundo. É essa união entre o corpo e o sentimento, segundo o filósofo, que proporciona a essência metafísica elementar: a vontade da vida.
por Vilmar Debona*Além disso, o que faz com que a atenção dada por Schopenhauer ao corpo seja vista como determinante é o papel indispensável que este elemento tem na teoria do conhecimento do pensador. Ele acredita que a base da formação do nosso conhecimento racional não é racional, já que começa com as sensações corporais. O que o filósofo chama de representações empíricas só existem porque, anteriormente, o corpo informou dados dos objetos e sensações abafadas ao entendimento que organiza as representações. Nesse contexto, é importante levar em conta que o entendimento também faz parte do corpo do sujeito, já que é entendido como um órgão físico ou o próprio cérebro. Assim, em vez da racionalidade, como se fosse uma rainha do mundo, definir sozinha o conhecimento, ela se torna dependente dos dados corporais; só a partir desses dados a razão pode fazer algo.
Resumidamente, segundo Schopenhauer, ocorre o seguinte: por meio das afecções do corpo, o indivíduo enraíza-se no mundo e passa a intuí-lo pelo entendimento, gerando, assim, o conhecimento. Com efeito, se o indivíduo é sujeito do conhecimento, ele é também corpo. Assim, inserida no campo da discussão da cognoscibilidade humana, a noção de corpo concebida pelo pensador apresenta-se como determinante. Não mais se corre o risco da admissão de uma "cabeça de anjo alada" designando a mente do homem totalmente alheia a seu corpo, algo possível quando se considera apenas o domínio da abstração sem uma base corpórea.
Nesse sentido, se a fim de sustentar a sua teoria do conhecimento, Descartes tomou o cogito como determinante, estabelecendo a dualidade corpo/alma e o primado da res pensante sobre a res extensa; Schopenhauer, em vez de delimitar corpo e alma, une corpo e intelecto. Tanto o corpo quanto o intelecto são expressões de um mesmo em-si, que, acima de tudo, expressam algo que o pensamento e os conceitos não alcançam, a própria vontade.
O ponto de partida do conhecimento
A questão pode ser mais bem detalhada quando consideramos que o corpo é tomado pelo filósofo sob duas perspectivas. Uma que o considera como objeto imediato e outra que o vê como objeto mediato. Nesse sentido, "o entendimento nunca seria usado, caso não houvesse algo a mais, de onde ele partisse. E este algo consiste tão-somente nas sensações dos sentidos, a consciência imediata das mudanças do corpo, em virtude da qual este é objeto imediato."
Além disso, Schopenhauer salienta a que o corpo é a representação que constitui para o sujeito o ponto de partida para o conhecimento. O corpo é, pois, objeto imediato na medida em que é um mero conjunto de sensações dos sentidos que advêm da ação dos outros corpos sobre si. Nesse primeiro aspecto, o corpo designa propriamente a vontade porque cada ato de vontade corresponde a um movimento corporal; e, então, ele passa a ser - além de condição de possibilidade do conhecer - a chave para se descobrir ou se decifrar o "enigma do mundo". Contudo, esse mesmo corpo pode fornecer dados dele mesmo, na medida, por exemplo, em que os olhos veem suas partes e as mãos o podem tocar. Assim é que o corpo passa a ser, tal como os outros, objeto mediato, portanto, conhecido como representação na intuição do entendimento. Para que esse conhecimento ocorra é necessária, através do uso da lei da causalidade, a ação de uma de suas partes sobre as outras.
O autor faz uma ressalva quando toma o corpo como objeto imediato. O corpo não se dá propriamente como objeto por um motivo claro: é que Schopenhauer não o considera de um ponto de vista unilateral, ou seja, tão somente do ponto de vista do mundo como representação, o que justificava designá-lo como objeto, mas, além disso, passa a considerá-lo também a partir do mundo como vontade. De fato, principalmente a partir do Livro II de O Mundo como Vontade e como Representação, ações do corpo e atos da vontade passam a se identificar e, em razão disso, o corpo é também visto como Objeto da Vontade (Objektität des Willens). Assim é que o objeto imediato passa a ser visto por si mesmo e, mais ainda, esse outro modo de conhecimento passa a se distinguir do que é comum à representação. Com isso, a certa altura já não se tem mais tão-somente "sensações dos sentidos", ou seja, um mero meio para algo outro, mas a realidade externa. Esse mesmo meio passa a se definir como objeto e a sua figura corporal começa a ser desenhada, estando ela dotada de especificidades.
Edifício das construções racionais
Assim, o corpo, além de revelar a Vontade e ser objeto imediato, torna-se mais um objeto passível de conhecimento. É então que seus próprios membros podem se conhecer; uma mão vista ou um olho tocado e, ambos, situados espacialmente, tornam-se objetos mediatos, muito embora sejam eles também, na medida em que a mão ajuda na construção de outros objetos e o olho vê, objetos imediatos. Vê-se, pois, o motivo pelo qual, caso não houvesse a atuação do entendimento - um membro corporal determinante para a construção do conhecimento - não haveria também um mundo externo. Uma sensação por si mesma seria uma "coisa pobre", mera afecção dos sentidos. Enquanto tal, essas sensações não poderiam conter nada de objetivo, portanto, nada que se assemelhasse a uma intuição.
Desse modo, a realidade exterior a cada sujeito do conhecimento é um produto do entendimento, esse artesão que se serve das formas do princípio de razão e dos dados possibilitados pelo corpo e, com isso, oferece as representações intuitivas que se entrelaçam, formando a exterioridade. Por isso, o mundo efetivo não é um dependente da razão. Ao contrário, em vez de a razão oferecer algo, é o entendimento que, com as suas intuições empíricas possibilitadas pelo corpo, apresentase como a base do edifício das construções racionais e do conhecimento humano.
Ora, se a tarefa por excelência da filosofia é acercar-se de conceitos e com eles dar sentido ao mundo, Schopenhauer acolhe e destaca o que em essência é o avesso da abstração conceitual. Com isso, o perigo iminente da dispersão abstracionista diminui, já que os conceitos têm uma referência in concreto na realidade exterior; o pensamento provém do não pensado e, portanto, não toma este último como algo que não mereça atenção. Eis, pois, um elogio significativo ao corpo no interior da filosofia e - por que não - uma filosofia fincada no corpo.
*Vilmar Debona é Mestre e Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e Professor Analista de Conteúdos do Inteligência Educacional e Sistemas de Ensino (IESDE).
Fonte: Revista Filosofia