sexta-feira, julho 03, 2009

Aposto o apóstata da gramática

Longe de ter alguma relação direta com os conceitos de adjetivo ou advérbio, o aposto prefere se afastar dos outros elementos que compõem a classe dos termos acessórios da oração para se atar aos substantivos.


por Maurício Silva

Como várias categorias linguísticas que a gramática procura padronizar por meio de normas e regras, o aposto é um componente estrutural da oração bastante controverso, a ponto mesmo de podermos considerá-lo, sem rodeios, uma espécie de apóstata em relação às suas origens: é que, curiosamente, o aposto - conceito gramatical já presente nos gramáticos clássicos (como em Quintiliano) - provém do grego epítheton, que deu origem, em português, à palavra epíteto, isto é, elemento que qualifica, que adjetiva. Ora, embora qualifique o termo a que se refere, a condição básica do aposto é justamente ser um elemento gramatical de valor substantivo que explica, resume ou desenvolve outro substantivo.

Longe de ter alguma relação direta com os conceitos de adjetivo ou advérbio, o aposto prefere se afastar dos outros elementos que compõem a classe dos termos acessórios da oração (adjunto adnominal e adjunto adverbial) para se atar, num quase autoisolamento sintático, aos substantivos, adquirindo ele mesmo, como dissemos há pouco, um valor substantival.

Contudo, não se pode negar que - da mesma maneira que o adjunto adnominal e o adjunto adverbial, dos quais é uma espécie e coirmão - o aposto anexa ao substantivo a que se liga um ou mais dados secundários, não sendo, portanto, como quer Celso Pedro Luft em sua Gramática Resumida, "rigorosamente necessário à compreensão do enunciado".

Para o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o sentido de aposto sugere, em primeiro lugar, a ideia de algo atrelado, que se acrescenta a alguém ou a alguma coisa. De fato, adaptando esse sentido primário para os termos da gramática, o aposto é definido como um termo de valor substantivo que explica, resume ou desenvolve outro substantivo, como ocorre nos exemplos que seguem, em que os apostos aparecem em destaque: "amanhã, sábado, será um dia muito especial"; "para conseguirmos é necessário isto: coragem"; "as frutas, as verduras, a carne, tudo estragou"; "aquele rapaz, aluno exemplar, tirou a melhor nota da sala". Já pela variedade de espécies por meio das quais o aposto se manifesta, percebese, como afirmamos antes, tratar-se de um termo controverso.

Talvez seja exatamente por isso que alguns gramáticos - procurando "dar nomes aos bois", como se diz popularmente - preferem subdividir os apostos em tipos distintos, conferindo-lhes nomes que procuram, de alguma maneira, esclarecer o sentido que adquirem no contexto oracional. Dessa forma, teríamos, então, o aposto explicativo ("José, homem leal, estava bem disposto"), o aposto enumerativo ("Há duas coisas importantes: o amor e a amizade"), o aposto de oração ("João chegou atrasado ontem, coisa que não pode se repetir"), o aposto de especificação ("Esta é a cidade de São Paulo, onde fica o Parque Villa Lobos") etc. Alguns autores a consideram este último caso um adjunto adnominal, pela carência de pausa, a qual reputam condição imprescindível para a existência do aposto.

A questão da pausa (ou das vírgulas), contudo, pode se constituir num fenômeno enganoso, pois poderia levar o incauto leitor a confundir o aposto com o predicativo. Mas, novamente, é o caráter apostático (de apóstata!) que o salva desse constrangimento, pois, tendo se afastado de sua condição adjetival primitiva, o aposto, como dissemos reiteradas vezes, só pode ter um valor substantivo. Com efeito, há que se diferenciar aposto e predicativo (vide box), lembrando que enquanto o primeiro tem valor substantivo ("Pedro, bom aluno, não veio hoje"), o segundo tem valor atributivo ("Pedro, preocupado e ansioso, chegou atrasado hoje).

Pois é! Diante de tantos detalhes, aposto que tem muita gente pensando que o aposto existe mesmo, muitas vezes, para nos confundir.

Aposto x Predicativo

Na "Nova Gramática do Português Contemporâneo", Celso Cunha e Lindley Cintra discorrem sobre o "aposto predicativo". Explicam os gramáticos: "Com o aposto atribui-se a um substantivo a propriedade representada por outro substantivo. Os dois termos designam sempre o mesmo ser, o mesmo objeto, o mesmo fato ou a mesma idéia. Por isso, o aposto não deve ser confundido com o adjetivo que, em função de predicativo, costuma vir separado do substantivo que modifica por uma pausa sensível (indicada geralmente por vírgula na escrita). Numa oração como a seguinte:

E a noite vai descendo muda e calma. (F. Espanca, S, 60)

que também poderia ser enunciada

E a noite, muda e calma, vai descendo.
ou
E, muda e calma, a noite vai descendo.

muda e calma é predicativo de um predicado verbo-nominal.

O mesmo raciocínio aplica-se à análise de orações elípticas, cujo corpo se reduz a um adjetivo, que nelas desempenha a função de predicativo.

É o caso de frases do tipo:
Rico, desdenhava dos humildes.

em que rico não é aposto. Equivale a uma
oração adverbial de causa [= porque era rico],
dentro da qual exerce a função de predicativo."

Alguns autores É o caso de Celso Pedro Luft, em sua já citada gramática, mas também do linguista Mattoso Câmara, para quem, em seu Dicionário de Linguística e Gramática, o aposto "se separa do elemento a que se opõe por uma pausa inconclusa, que na escrita se indica por vírgula".

Fonte: Revista Língua Portuguesa


quinta-feira, julho 02, 2009

Bilinguismo infantil: bom ou ruim?

Estudo avalia consequências do aprendizado de mais de uma língua durante a infância.

Por Barbara Marcolini

Quais os efeitos do aprendizado precoce de uma língua estrangeira? Para responder a essa pergunta, uma psicóloga paulista investigou a fundo estudos que apontam vantagens ou desvantagens do bilinguismo em crianças de até quatro anos. Ela concluiu que os possíveis benefícios do ensino de uma segunda língua dependem em grande parte do ambiente em que a criança vive.
Embora a língua oficial do Brasil seja o português, é crescente o número de crianças que aprendem outro idioma ainda nos primeiros anos de vida. A importância do inglês no mundo globalizado, a manutenção de línguas indígenas em escolas dentro de reservas e a existência de projetos bilíngues em escolas que ficam nas fronteiras com outros países sul-americanos são alguns motivos para o fenômeno.

A psicóloga Elizabete Flory analisou inúmeros trabalhos brasileiros e estrangeiros sobre o desenvolvimento de crianças que aprenderam duas línguas ao mesmo tempo, ou que pelo menos começaram o aprendizado do segundo idioma antes de dominarem o primeiro. O estudo foi feito durante o doutorado da pesquisadora na Universidade de São Paulo (USP).

Flory verificou que, até meados dos anos 1960, o bilinguismo era mal-visto pela maioria dos estudiosos. Testes feitos nos Estados Unidos compararam crianças bilíngues e monolíngues e apontaram uma possível confusão de identidade e quociente de inteligência (QI) mais baixo naquelas que falavam mais de uma língua.

A psicóloga relacionou essas conclusões a algumas falhas nos testes, que não consideravam a situação cultural ou econômica das crianças analisadas. “Esses testes foram feitos com filhos de imigrantes, que viviam em um ambiente onde sua língua e cultura eram desvalorizadas”, analisa.

Foi a partir de um estudo realizado por pesquisadores canadenses no início da década de 1960 que o bilinguismo começou a ser considerado benéfico. A comparação foi feita entre crianças que partilhavam as mesmas condições socioeconômicas e não sofriam discriminação cultural, no caso das bilíngues.

O resultado chegou a surpreender os pesquisadores: as crianças bilíngues se saíram melhor em 15 dos 18 testes de QI aplicados. Mas Flory também questiona o estudo, argumentando que a psicologia atual não considera que o QI determine a inteligência de uma pessoa. “A inteligência é um conceito relativo, que pode se desdobrar em habilidades distintas”, completa.

Vantagens cognitivas
A psicóloga repudia a atribuição de vantagens ou desvantagens absolutas ao bilinguismo precoce. “Dizer que o bilinguismo aumenta a inteligência é tão errado quanto dizer que diminui”, pondera. Ela explica que as crianças bilíngues podem desenvolver algumas capacidades mais cedo que crianças monolíngues, mas isso não significa um aumento da sua inteligência.

Por falarem mais de uma língua, crianças bilíngues desenvolvem mais rápido o que a psicologia chama de “controle inibitório”, pois, enquanto falam uma língua, elas naturalmente inibem a outra. “Isso nos auxilia quando temos muitos estímulos e precisamos nos focar em apenas um deles”, acrescenta Flory.

Além disso, o bilinguismo estimula a flexibilidade do pensamento. Quando uma criança aprende a falar dois idiomas ao mesmo tempo, ela compreende que os objetos podem ter mais de um nome. “Isso freia o que chamamos de respostas automáticas, pois há flexibilidade para se pensar em novas soluções, dar respostas mais criativas”, afirma a psicóloga.

Flory ressalta que o desenvolvimento infantil é muito influenciado pelo contexto em que a segunda língua é aprendida. “Nem sempre todas essas características são observadas no mesmo indivíduo”, diz. “Deve-se levar em conta o ambiente em que essa criança vive e o valor que é atribuído à sua segunda língua.”

A pesquisadora sugere algumas ações que podem auxiliar no acompanhamento de crianças que vivem em ambientes bilíngues. Pais e educadores devem adequar o ensino à capacidade cognitiva da criança – promovendo brincadeiras que envolvam as palavras, por exemplo – e estimular a valorização da segunda língua ao mostrar o porquê do seu uso.

Fonte: Revista Ciência Hoje

quarta-feira, julho 01, 2009

Schopenhauer


A vontade é o elemento fundamental a fim de trazer o sentido das coisas e do mundo. É essa união entre o corpo e o sentimento, segundo o filósofo, que proporciona a essência metafísica elementar: a vontade da vida.

por Vilmar Debona*

Podemos dizer que o filósofo Arthur Schopenhauer, nascido em Dantzig (em 1788) e falecido em Frankfurt (em 1860), marcou a História da Filosofia no Ocidente, principalmente por ter valorizado um elemento novo nas discussões filosóficas: a noção de corpo. Nos tempos em que Schopenhauer viveu, as filosofias de Hegel e de Schelling predominavam e se apoiavam somente no aspecto racional do homem. Para Schopenhauer, em vez de a razão definir o homem e "decifrar o enigma do mundo", são o corpo e o sentimento, o que ele chama de vontade, que permitem alcançar e dizer o sentido das coisas. A vontade é o que há de mais essencial no mundo; ela se manifesta em toda a natureza e nos corpos animais, independentemente de serem eles possuidores ou não da faculdade de razão. Todos os corpos do mundo fenomênico são considerados, nessa filosofia, como concretização de um mesmo querer que nunca cessa. A objetivação da vontade não escolhe se vai se manifestar no homem mais inteligente ou numa pedra. Desse modo, em se tratando de espécies, a diferença entre os seres humanos e os demais animais é quase insignificante, visto que tanto o homem quanto o animal têm por base uma mesma essência metafísica, a vontade de vida.

Além disso, o que faz com que a atenção dada por Schopenhauer ao corpo seja vista como determinante é o papel indispensável que este elemento tem na teoria do conhecimento do pensador. Ele acredita que a base da formação do nosso conhecimento racional não é racional, já que começa com as sensações corporais. O que o filósofo chama de representações empíricas só existem porque, anteriormente, o corpo informou dados dos objetos e sensações abafadas ao entendimento que organiza as representações. Nesse contexto, é importante levar em conta que o entendimento também faz parte do corpo do sujeito, já que é entendido como um órgão físico ou o próprio cérebro. Assim, em vez da racionalidade, como se fosse uma rainha do mundo, definir sozinha o conhecimento, ela se torna dependente dos dados corporais; só a partir desses dados a razão pode fazer algo.

Resumidamente, segundo Schopenhauer, ocorre o seguinte: por meio das afecções do corpo, o indivíduo enraíza-se no mundo e passa a intuí-lo pelo entendimento, gerando, assim, o conhecimento. Com efeito, se o indivíduo é sujeito do conhecimento, ele é também corpo. Assim, inserida no campo da discussão da cognoscibilidade humana, a noção de corpo concebida pelo pensador apresenta-se como determinante. Não mais se corre o risco da admissão de uma "cabeça de anjo alada" designando a mente do homem totalmente alheia a seu corpo, algo possível quando se considera apenas o domínio da abstração sem uma base corpórea.

Nesse sentido, se a fim de sustentar a sua teoria do conhecimento, Descartes tomou o cogito como determinante, estabelecendo a dualidade corpo/alma e o primado da res pensante sobre a res extensa; Schopenhauer, em vez de delimitar corpo e alma, une corpo e intelecto. Tanto o corpo quanto o intelecto são expressões de um mesmo em-si, que, acima de tudo, expressam algo que o pensamento e os conceitos não alcançam, a própria vontade.

O ponto de partida do conhecimento
A questão pode ser mais bem detalhada quando consideramos que o corpo é tomado pelo filósofo sob duas perspectivas. Uma que o considera como objeto imediato e outra que o vê como objeto mediato. Nesse sentido, "o entendimento nunca seria usado, caso não houvesse algo a mais, de onde ele partisse. E este algo consiste tão-somente nas sensações dos sentidos, a consciência imediata das mudanças do corpo, em virtude da qual este é objeto imediato."

Além disso, Schopenhauer salienta a que o corpo é a representação que constitui para o sujeito o ponto de partida para o conhecimento. O corpo é, pois, objeto imediato na medida em que é um mero conjunto de sensações dos sentidos que advêm da ação dos outros corpos sobre si. Nesse primeiro aspecto, o corpo designa propriamente a vontade porque cada ato de vontade corresponde a um movimento corporal; e, então, ele passa a ser - além de condição de possibilidade do conhecer - a chave para se descobrir ou se decifrar o "enigma do mundo". Contudo, esse mesmo corpo pode fornecer dados dele mesmo, na medida, por exemplo, em que os olhos veem suas partes e as mãos o podem tocar. Assim é que o corpo passa a ser, tal como os outros, objeto mediato, portanto, conhecido como representação na intuição do entendimento. Para que esse conhecimento ocorra é necessária, através do uso da lei da causalidade, a ação de uma de suas partes sobre as outras.

O autor faz uma ressalva quando toma o corpo como objeto imediato. O corpo não se dá propriamente como objeto por um motivo claro: é que Schopenhauer não o considera de um ponto de vista unilateral, ou seja, tão somente do ponto de vista do mundo como representação, o que justificava designá-lo como objeto, mas, além disso, passa a considerá-lo também a partir do mundo como vontade. De fato, principalmente a partir do Livro II de O Mundo como Vontade e como Representação, ações do corpo e atos da vontade passam a se identificar e, em razão disso, o corpo é também visto como Objeto da Vontade (Objektität des Willens). Assim é que o objeto imediato passa a ser visto por si mesmo e, mais ainda, esse outro modo de conhecimento passa a se distinguir do que é comum à representação. Com isso, a certa altura já não se tem mais tão-somente "sensações dos sentidos", ou seja, um mero meio para algo outro, mas a realidade externa. Esse mesmo meio passa a se definir como objeto e a sua figura corporal começa a ser desenhada, estando ela dotada de especificidades.

Edifício das construções racionais

Assim, o corpo, além de revelar a Vontade e ser objeto imediato, torna-se mais um objeto passível de conhecimento. É então que seus próprios membros podem se conhecer; uma mão vista ou um olho tocado e, ambos, situados espacialmente, tornam-se objetos mediatos, muito embora sejam eles também, na medida em que a mão ajuda na construção de outros objetos e o olho vê, objetos imediatos. Vê-se, pois, o motivo pelo qual, caso não houvesse a atuação do entendimento - um membro corporal determinante para a construção do conhecimento - não haveria também um mundo externo. Uma sensação por si mesma seria uma "coisa pobre", mera afecção dos sentidos. Enquanto tal, essas sensações não poderiam conter nada de objetivo, portanto, nada que se assemelhasse a uma intuição.

Desse modo, a realidade exterior a cada sujeito do conhecimento é um produto do entendimento, esse artesão que se serve das formas do princípio de razão e dos dados possibilitados pelo corpo e, com isso, oferece as representações intuitivas que se entrelaçam, formando a exterioridade. Por isso, o mundo efetivo não é um dependente da razão. Ao contrário, em vez de a razão oferecer algo, é o entendimento que, com as suas intuições empíricas possibilitadas pelo corpo, apresentase como a base do edifício das construções racionais e do conhecimento humano.

Ora, se a tarefa por excelência da filosofia é acercar-se de conceitos e com eles dar sentido ao mundo, Schopenhauer acolhe e destaca o que em essência é o avesso da abstração conceitual. Com isso, o perigo iminente da dispersão abstracionista diminui, já que os conceitos têm uma referência in concreto na realidade exterior; o pensamento provém do não pensado e, portanto, não toma este último como algo que não mereça atenção. Eis, pois, um elogio significativo ao corpo no interior da filosofia e - por que não - uma filosofia fincada no corpo.

*Vilmar Debona é Mestre e Licenciado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR) e Professor Analista de Conteúdos do Inteligência Educacional e Sistemas de Ensino (IESDE).

Fonte: Revista Filosofia