quarta-feira, maio 06, 2009

Ensinar a pensar (Dulce Critelli)

“De pensar morreu um burro”. “Quem pensa não faz”… Muitos ditos populares expressam um certo sarcasmo e desprezo em relação ao pensar, revelando uma crença, alimentada há séculos, de que o pensar atrapalha, emperra a ação, é coisa de quem não tem nada para fazer.

Quando se trata, então, da filosofia, esse deboche vai ainda mais longe, afirmando que todo pensador não tem pé na realidade e vive numa torre de marfim.

É certo que o tempo da reflexão conflita com a urgência do agir. Mas, nem sempre todo agir é assim urgente e, na maioria da vezes, parar para pensar nos salva de decisões equivocadas e prejudiciais. Pensar a respeito de alguma coisa ou de algum acontecimento, é compreender os seus verdadeiros sentidos e significados.

Um artigo publicado na Folha no dia 1º de outubro deste ano comentava o Saeb, exame federal de avaliação da aprendizagem de alunos do último ano do ensino médio. Mal alfabetizados, esses adolescentes, nas palavras do jornalista, “não conseguem, por exemplo, compreender o efeito de humor provocado por ambigüidade de palavras ou reconhecer diferentes opiniões em um mesmo texto”.

Quem não sabe ler, não sabe distinguir, nem rir de fato, nem pensar. É presa fácil de mistificações e sujeições, obediente a tudo o que causar a impressão mais forte.

O pensar, diz Sócrates, “abre os olhos do espírito”. E isto quer dizer que a reflexão explicita mal-entendidos, desvela segundas intenções, percebe mentiras, desautoriza preconceitos, descobre manipulações… Em decorrência, sentimo-nos capacitados para escolher, dizer não, colocar limites, mudar a ordem das coisas, redefinir destinos, desarticular dominações…

Em outras palavras, o pensar prepara nossa liberdade e nossa autonomia tanto quanto nos faz reconhecer as responsabilidades que nos cabem nas situações vividas.

Liberdade e autonomia, convenhamos, não são comportamentos muito bem-vindos na esfera político-social, porque ameaçam o poder vigente.

E na esfera da vida privada, a responsabilidade é, na maioria das vezes, temida e recusada pelas pessoas, porque cria encargos e compromissos.

Liberdade, autonomia, responsabilidade?… O pensar põe em perigo. E, em grande parte, por isso mesmo, ele é estrategicamente convertido em objeto de escárnio.

Ensinar a pensar. É esse o único projeto que poderia nos tirar do atoleiro de pobreza, de violência, de impotência em que vivemos. É um projeto cuja origem não está em nenhuma economia, nem ideologia ou política oficial. Não precisa de equipamentos especiais, nem depende da criação de uma secretaria do pensamento. É só uma atitude. Ensinar a pensar, aprender a pensar.



SOBRE DULCE CRITELLI:
Dulce Critelli é Profª Drª Titular do Departamento de Filosofia da PUC-SP, onde leciona desde 1973, nos cursos de graduação e pós-graduação. É Mestre em Filosofia da Educação e Doutora em Psicologia da Educação. Sua área de especialização é a Filosofia da Existência. Tem ministrado cursos de Pós-Graduação em diversas Universidades brasileiras como professora convidada, e proferido inúmeras palestras.

É articulista da Folha Equilíbrio do jornal Folha de São Paulo e terapeuta existencial. Coordena o “Existentia – Centro de Orientação e Estudos da Condição Humana”, que fundou em 2002, e tem como perspectiva o uso da filosofia como uma ferramenta essencial para o auto-conhecimento e o desenvolvimento pessoal de indivíduos e organizações. Ali oferece serviços de orientação profissional, aconselhamento, cursos, palestras, oficinas e desenvolve programas especiais para empresas.

Na PUC-SP exerceu cargos acadêmico-administrativos, entre os quais, o de Coordenadora do Curso de Graduação em Filosofia, Chefia de Gabinete da Reitoria, Coordenadora da Assessoria de Comunicação Institucional, Presidente da Comissão de Ética em Pesquisa. Foi membro representante eleito em diversas oportunidades para os Conselhos da Universidade, entre eles, o de Administração e Finanças e o de Ensino e Pesquisa.

Em 1991, foi Supervisora Geral de Comunicação da Secretaria das Administrações Regionais da Prefeitura do Município de São Paulo.

Elaborou uma metodologia para pesquisa de campo fundada na filosofia existencial, que tem sido utilizada em programas de pós-graduação do país.

Publicou os livros “Educação e Dominação Cultural” (Cortez, 1981); "Todos nós... Ninguém” (Moraes, 1981); e “Analítica do Sentido” (Educ/Brasiliense, 1996), além de artigos em vários livros e revistas.

Trabalha temas relativos à qualidade de vida, ética, meio ambiente, responsabilidade social e existencial, produção e gestão do conhecimento, filosofia, psicologia e educação.

Fonte do texto :

Publicado na coluna “Outras Idéias” , Folha Equilíbrio,“Folha de São Paulo”, de 25 de outubro de 2007


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